Igrejas adultocêntricas?

Crianças vem a Jesus, John Lautermilch (1910-1986)
Texto de Nicolás Panoto.
É interessante constatar como os imaginários sociais atravessam a vida das igrejas: as diferenciações entre grupos pertencentes a distintos estratos socioeconômicos, a relação homem-mulher, os modelos de organização institucional, entre outros aspectos que poderíamos mencionar. Muitas vezes concebemos as comunidades eclesiais como pequenas ilhas que não são afetadas no que são e fazem pelo que acontece na sociedade. Longe disso, são uma expressão inevitável das vicissitudes, complexidades, belezas e problemáticas que se apresentam em nosso meio. Isto também diz respeito à infância e adolescência.


Socialmente, tais grupos etários carregam uma série de estigmas que influenciam tanto seu desenvolvimento como também a atitude de terceiros sobre eles e elas. A ideia evolutiva sobre o humano, por exemplo, que coloca a infância e a adolescência em um estado de “quase-adultez”, que se poderia traduzir como uma condição “quase-humana”. Também a preferência que se dá à “lógica adulta” sobre aquelas que representam as crianças e os adolescentes: a razão sobre o emocional, a distância individualista sobre a espontaneidade do corporal, a técnica sobre o lúdico etc.

A vida de adulto se representa, entre outras coisas, com a maturidade, a frieza nas decisões, a superação das instabilidades, a semeadura da razão, a efetividade dos resultados. E é na rigidez destes estereótipos onde muitas vezes perdemos a surpresa da espontaneidade, o frescor da aproximação dos corpos e a riqueza dos caminhos que abre nossa liberdade intrínseca. Em outros termos, nos esquecemos da condição lúdica que caracteriza a vida humana e social. É esta condição que nos impede de “ir mais além” e abrir horizontes. Necessitamos ser como crianças que jogam. Como disse Rubem Alves, “no jogo, o homem encontra significado e, portanto, diversão, precisamente no fato de suspender as regras do jogo da realidade, que o transformam num ser sério e em tensão constante. A realidade nos deixa enfermos. Produz úlceras e depressões nervosas. O jogo, entretanto, cria uma ordem da imaginação e, portanto, produto da liberdade”(1).

Por tudo isto, a infância é um desafio para as igrejas. Poderão me dizer: “Mas, como, se quase todas as igrejas possuem programas de trabalho com crianças e adolescentes?”. Isso é verdade. Entretanto, trabalhar com a infância e a adolescência não quer dizer “ter programas”. Muitas vezes, precisamente tais atividades podem se transformar em mecanismos para distanciar as crianças e os adolescentes dos supostos “espaços centrais” da vida da igreja: da tomada de decisões até um protagonismo ativo nas áreas mais “importantes”.

Que papéis cumprem nossas crianças e adolescentes nas igrejas? Sua presença passa por uma atividade no fundo do templo ou têm um lugar protagônico em nossas liturgias? Nos perguntamos se as atividades que realizamos tratam de temas ou dinâmicas pertinentes a suas necessidades atuais ou queremos continuar com “o que sempre se faz” para mantermos eles distantes das complexidades da realidade? Por que não pensar em deixar nossa lógica adulta, organizada e institucionalizada de ser igreja para adentrarmos em dinâmicas inclusivas, lúdicas e dinâmicas onde as crianças se sintam parte, e possamos aprender com elas?

Levar a sério a infância é deixar de ver as crianças como uma “etapa incompleta” da vida humana; é deixar de criar espaços de contenção e entretenimento enquanto os adultos nos encarregamos das “coisas sérias”. As crianças nos apresentam uma lógica de vida cuja importância está em si mesma, não na comparação com a nossa como adultos.

Assumir a riqueza do lúdico na vida implica compreender que as estruturas institucionalizadas podem ser transformadas, que os seres humanos não são valiosos por possuir um lugar mas pelas infinitas possibilidades de se mover e de criar coisas novas. Também envolve o aprendizado de ver Deus a partir de seu movimento constante em nossa vida cotidiana, não a partir de regras e preconceitos fixos. Como diz Edesio Sánchez Cetina, “o peculiar do jogo é a criação de um momento no qual o que conta é o sujeito do jogo, não as regras. Estas se transformarão no próximo jogo. Por isso a teologia que surge neste contexto não pode sistematizar-se. A única coisa segura no jogo é a inovação, a surpresa, a liberdade que se vive. E esse momento do jogo, ainda que pareça efêmero, por ser ‘evangelho’ se converte em eternidade” (2).

Romper com o adultocentrismo das igrejas implica distanciar-nos de uma lógica que se naturalizou em nossas sociedades, que responde ao etnocentrismo e à tecnificação e racionalização típicas do capitalismo ocidental, que deposita no “homem adulto” toda a capacidade para “transformar o mundo”, para criar o caminho do “progresso”, para não deixar espaço para o imprevisto. É precisamente esta mesma lógica que criou mecanismos de segregação, opressão e pobreza, afetando majoritariamente as grandes massas de crianças e adolescentes, como os grupos marginalizados e vulneráveis.

Portanto, se não mudamos nossa lógica de vida e nossa maneira de ser igreja, todos os nossos programas de trabalho podem terminar sendo apenas paliativos frente a um contexto que nos oprime violentamente. Necessitamos ir fundo. Todo empreendimento de trabalho com a infância e a adolescência implica, de parte dos adultos, um ato de humildade e de mudança de posição, deixando de lado as tribunas de poder e do suposto conhecimento para se arriscar a questionar os espaços de segurança e repensar a rigidez institucionalizada. É na inquestionabilidade adulta do estabelecido onde encontramos a violência marginalizante que oprime a nossas crianças.

Recordemos a ação de Jesus em Marcos 9.36: “E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles...”. Esta criança representa — em seu corpo, olhar, pensamento, sentimentos — a imagem mesma do Reino. Um pequeno, que em sua presença joga por terra as elucubrações teológicas dos discípulos adultos que, em seu afã de buscar constantes explicações, não observavam, não sentiam, não participavam das ações do Mestre, assim como aquelas crianças que, sem se importar o que diriam os outros, pegavam o braço de Jesus para escutá-lo e senti-lo.

Sejamos como crianças: este é o desafio. Como disse Ernesto Sábato, falecido recentemente: “Toda criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos. Os grandes artistas são pessoas estranhas que conseguiram preservar no fundo de sua alma essa inocência sagrada da infância e dos homens que chamamos primitivos, e por isso provocam o riso dos estúpidos” (A resistência).

Texto de Nicolás Panoto, licenciado em Teologia pelo Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos - ISEDET. Mestrando em Antropologia Social e doutorado em Ciências Sociais pela FLACSO (Argentina).
Notas(1) Rubem Alves, Hijos del mañana. Salamanca: Sígueme, 1976, p. 112.
(2) Edesio Sánchez Cetina. Para un mundo mejor… El niño es el mejor protagonista. In: Seamos como niños. Buenos Aires: Ediciones Kairós, 2007, p. 80.

* Artigo publicado na Revista Kairós, Ano 11, No. 27, Jul. 2011, pp.12-15.

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