Leão de chácara invertido

Sai depressa pelas ruas e bairros da cidade e traze aqui os pobres, e os aleijados, e os mancos, e os cegos. E disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e ainda há lugar. E disse o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e força-os a entrar, para que a minha casa se encha. Lc 14.21-23
Convite para o grande banquete, Jan Luyken
No trágico episódio da boate em Santa Maria, as primeiras evidências de culpa recaíram sobre os seguranças, que, segundo o depoimento de alguns, impediram que os jovens saíssem a tempo de se salvarem. Seja ele porteiro de boate ou segurança de loja de departamentos, este sujeito ganhou do incrível senso de humor do brasileiro o apelido de leão de chácara. Aquela figura de um homem de 1,90m, com semblante austero, usando um terno preto, que nitidamente não lhe cabe, já é coisa comum no nosso cotidiano. Resumindo, ele a pessoa que, mesmo sem treinamento adequado, está sempre encarregada de determinar quem pode ou quem não pode entrar ou frequentar determinado ambiente. Porém, o simples fato de ser frequente e de ter se tornado comum não significa que é necessariamente uma coisa boa. Pessoas, principalmente as mais idosas e franzinas, se sentem constrangidas ao se depararem com aquelas montanhas de músculos sarados que os ternos mal cortados escondem.

Para espanto nosso, constatamos também que algumas igrejas tem, distribuídas estrategicamente pelos templos, pessoas cuja atividade é bem semelhante à dos famosos leões de chácara do comércio. No caso específico desta igreja, existem duas diferenças básicas: primeiro, estes cargos são exercidos também por mulheres, e segundo, eles e elas receberam o honorífico título de chamados de obreiros. A exemplo dos familiares leões de chácara, eles estão presentes nos cultos para auxiliar o bom andamento dos serviços litúrgicos, se é que assim podemos chamá-los, mas prontos também para coibirem qualquer manifestação estranha, como impedirem a entrada ou permanência dos inconvenientes. Traduzindo: daqueles que não tem com o que colaborar.

Ao nos depararmos com essa parábola contada por Jesus por ocasião de uma cerimônia onde os acessos aos lugares privilegiados estavam sendo preenchidos segundo o prestígio de cada um d e s convidados, não temos como não questionar essa prática nas igrejas. Não falo apenas destas, mas também das tradicionais, que autorizam pessoas a se postarem na porta dos templos filtrando a assistência. Pessoas essas que, não faz muito tempo, entraram por aquela mesma porta completamente arrasadas e lá encontraram o alívio que tanto ansiavam.

É por tudo isso que Jesus fez questão de nos apresentar o leão de chácara invertido. Aquele sujeito que vai atrás do moribundo, encontra o perdido, segura o desesperado e os faz entrar mesmo que não queiram, colocando-os à força no banquete do seu senhor. Jesus nos deu o exemplo do cristão que nunca está satisfeito com o seu trabalho, e que inconformado continua insistindo com ele que ainda há lugar, que ainda cabe mais gente. Força-os a entrar é a ordem estabelecida para nós. Determinar quem deve ou quem pode permanecer não é da nossa competência. Todas as vezes que descumprimos essa ordem direta as consequências são trágicas. A exemplo dos leões de chácara de Santa Maria, dos fariseus e dos escribas no tempo de Jesus, estamos fazendo justamente o que é mais condenável na porta do Reino dos Céus: não entramos e impedimos outros de fazê-lo.

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