Amor de mão única

Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. I Jo 4.10
João evangelista, Velázquez em 1619
O amor unilateral é uma realidade tão assombrosa que até o cinema já o utilizou como tema de alguns filmes. Num drama, de 2006, que tem por título “Longe dela”, uma mulher internada com mal de Alzheimer esquece-se do marido e se afeiçoa a um outro paciente também internado com o mesmo mal. Quando seu verdadeiro  marido vê sua mulher em pânico pelo fato do novo amor de sua esposa ter que deixar o hospital por falta de condições financeiras, se propõe a assumir as suas despesas médicas simplesmente pelo amor que dedicava unilateralmente a sua mulher.


Existe por aí um conto, se extraído de fatos, não sei, que narra o diálogo de um senhor de idade com uma enfermeira em uma clínica. Diz assim o conto:
Um homem de idade já bem avançada veio à clínica onde trabalho para fazer um curativo na mão ferida. Estava apressado, dizendo-se atrasado para um compromisso e, enquanto o tratava, perguntei-lhe qual o motivo da pressa. Ele me disse que precisava ir a um asilo de anciãos para, como sempre, tomar o café da manhã com sua mulher que estava internada lá. Disse-me que ela já estava há algum tempo nesse lugar porque tinha um Alzheimer bastante avançado. Enquanto acabava de fazer o curativo, perguntei-lhe se ela não se alarmaria pelo fato de ele estar chegando mais tarde.
– Não! – ele disse. – Ela já não sabe quem eu sou. Faz quase cinco anos que não me reconhece.
Estranhando, lhe perguntei:
– Mas, se ela já não sabe quem o senhor é, por que essa necessidade de estar com ela todas as manhãs?
Ele sorriu e dando-me uma palmadinha na mão, disse:
– É. Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei muito bem quem é ela.

Ambas as histórias são tão tocantes que parecem mesmo coisa de cinema apenas, pois é extremamente difícil que exista um amor com essa escala de despojamento entre dois seres humanos. Quem ama quer de fato ser amado, e isso é fundamental. Bom, nem tanto. Como há entre nós uma vasta gama de sentimentos que são sempre confundidos com o “quase amor”, se nivelarmos o amor por esse padrão, encontrar alguém amando assim não seria tão raro. Mas é importante ressaltar que as narrativas falam de amores verdadeiros e não paixões alucinatórias. Falam histórias de vida cuja vontade e a necessidade de continuar amando a quem não retribui esse amor sobrepõe obstáculos absurdamente grandes.

É exatamente assim que João, o evangelista, vê o amor de Deus por nós. Um amor que se antecipa e que ama independentemente de qualquer resposta. Nesse mesmo capítulo dedicado inteiramente ao amor de Deus, o escritor bíblico faz uma ressalva que tira o mérito de qualquer iniciativa que tenhamos de retribuir esse amor: 4.19 - Nós amamos porque ele nos amou primeiro.  Ou seja, até o amor que porventura venhamos a dedicá-lo encontra as suas raízes no amor dele por nós.

A associação mais próxima que podemos fazer das histórias contadas, com a nossa realidade e com o texto bíblico, curiosamente não está no amor de mão única, e sim no esquecimento alzheimeriano que insistimos ter em relação ao amor de Deus. Importante notar também a interpretação que João faz da manifestação antecipada desse amor. Nele, Deus não espera que esse seu amor dedicado a nós lhe seja devolvido em qualquer medida ou proporção, mas sim que seja repassado ao próximo como a única e aceitável forma de reconhecimento.  Não tão simples assim. Deus espera que o seu amor através de nós continue trafegando também por uma via de mão única.

Logicamente que João não tirou essa sua conclusão do amor de Deus de algo parecido com a abstração hollywoodiana de amor. Ele aprendeu desde muito cedo com Jesus, seu mestre, que através de palavras bem simples e diretas já havia traçado antecipadamente as linhas do seu ministério profético: Lc 6.31 - 6.32 – Se vocês amam somente aqueles que os amam, o que é que estão fazendo de mais? Até as pessoas de má fama amam as pessoas que as amam.

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