A fé e a crença II

Pergunta insidiosa dos fariseus e herodianos, Tissot
As vossas Festas da Lua Nova e as vossas solenidades, a minha alma as aborrece; já me são pesadas; estou cansado de as sofrer. Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue.
Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas. Is 1,14-17
Leia Mc7,1-23

Jesus quis mostrar a cada grupo individualmente a diferença entre fé e crença, e que essa diferença deveria servir de parâmetro para a religiosidade dos escribas e fariseus, de conforto e esperança para as multidões oprimidas por tantas exigências legais e de meta primordial de conduta moral para os seus discípulos. E ele começa pelo grupo mais difícil, pelo que possuía o mais intrincado pensamento, pelo menos suscetível a mudanças: o grupo dos que detinham a última palavra da religião e que eram religiosamente superiores a todos os demais. Eu não saberia exatamente a que compará-los hoje. Devido à grande diversidade de títulos honoríficos existentes, fica difícil contextualizá-los na igreja de hoje. Falo isso apenas no contexto da importância que cada um se imbuía, e não, logicamente, no contexto em que Jesus os colocou. Um escriba poderia ser hoje um pastor ou um missionário, já um fariseu seria no mínimo um apóstolo ou mesmo um bispo primaz, mas isso não é relevante. Importante é reconhecer que estas distinções e instituições ainda insistem em se fazer presentes no nosso tempo.

Ele começa dizendo que existe a fé, aquele movimento inicial que gerou toda a iniciativa de um povo qualquer que um dia se propôs a aceitar o chamado de Deus para ser o seu povo exclusivo. Existe aquela obstinada busca de sempre querer fazer a vontade de Deus, mesmo quando essa contraria a lógica e as circunstâncias. Existe aquele sentimento indescritível de estar tomado por uma consciência superior, que impulsiona o indivíduo experimentar coisas novas e de se lançar sem temor ao desconhecido abismo do pioneirismo. Mas, por outro lado existe também os preceitos legais que fazem este povo ser o que ele é, o que lhe dá uma identidade própria e única. Que faz com que todos permaneçam juntos e imbuídos de um só propósito. Existe também uma lei que deve ser inculcada na cabeça dos seus filhos e na cabeça dos filhos dos seus filhos. Existem os preceitos de obediência que fazem com que este povo seja mais que servo, que seja um amigo de Deus. Ambos os aspectos são de capital importância e ambos devem ser considerados e observados. Ambos são igualmente válidos, desde que não tentem se sobrepor ao outro, ou que não sejam motivos de tropeço ou de desvio do propósito maior que é a vontade de Deus.

Esta importância da fé declarada por Jesus vai repercutir mais tarde em Paulo quando escreveu aos gálatas, que os advertiu a repensar a sua conduta como igreja de Jesus Cristo. Paulo fala de uma forma tão parecida com o que Jesus disse no texto de Marcos, que parece que está falando ao mesmo grupo. Ó gálatas sem juízo! Quem foi que enfeitiçou vocês? Como é que vocês podem ter tão pouco juízo? Vocês começaram a sua vida cristã pelo poder do Espírito de Deus e agora querem ir até o fim pelas suas próprias forças? Será que as coisas pelas quais vocês passaram não serviram para nada? Não é possível! (Gl 3,1;3a e 4) A importância da fé da mesma forma inspirou João do Apocalipse quando escreveu à igreja de Éfeso, que pela conduta semelhante a dos gálatas estava falhando: Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança, e que não podes suportar homens maus, e que puseste à prova os que a si mesmos se declaram apóstolos e não são, e os achaste mentirosos;  e tens perseverança, e suportaste provas por causa do meu nome, e não te deixaste esmorecer. Tenho, porém, contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. (Ap 2,2-4)

Era justamente isso que faltava aos engravatados da capital: experimentar novamente o frescor do primeiro amor, se sentirem novamente tomados pela força avassaladora que gerou todo o movimento do qual agora eles eram, por que não, dignos representantes? Jesus não tentou invalidar o propósito da lei. Pelo contrário, deu a ela um valor ainda mais elevado do que servir simplesmente de cabresto para oprimir e controlar as pessoas. Jesus diz que a lei é mais uma oportunidade que Deus dá a cada um para mostrar a sua fé. Somente a lei e a fé juntas farão com que o povo louve a Deus como ele dignamente de ser louvado: com os lábios e com o coração.

Os escribas e fariseus tinham a lei ao seu lado. Muito do que faziam estava minuciosamente estabelecido por ela. Mas Jesus lhes diz que a lei deveria controlar antes a si mesmos. Que deveria servir antes como freio ao ímpeto de julgar e condenar. Que eles deveriam se servir da lei para coibir a força do poder que esmagava o povo, e não atrelar-se a ele. Que a lei deveria ser a expressão máxima da justiça de Deus, que nada tem a ver com o direito, mas que está além e acima dele. Uma lei que se coloca ao lado do necessitado e não do que detém o direito. Uma lei que limparia as suas mãos sujas de suborno, de exploração da fé, de sangue e lágrimas de inocentes. Deixem de show (a palavra grega que foi traduzida por hipócritas significa atores de teatro), deixem de jogar para a galera, deixem de servir aos propósitos daqueles que negam o Reino de Deus desde a sua essência. Cumpram a lei com quem protagoniza um ato de fé, como um movimento definitivo na direção daquele que lhes deu a lei para que vocês sejam o seu povo, e lhes deu a fé para que vocês sejam verdadeiros agentes do seu amor, da sua verdade e da sua justiça.

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