Não por quê?, mas como?

E ouvi uma voz do céu, que me dizia: Escreve: Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os sigam. Apocalipse 14.13
A morte de José do Egito, Giuseppe Crespi (1665-1747)
Compareci ontem à cerimônia pré crematória do avô de um companheiro de torcida. Fiquei admirado ao testemunhar o clima de tranquilidade, paz e confiança que pairava na capela onde se encontrava o corpo. Pessoas falando com carinho do falecido davam provas da grande admiração que ele conquistou entre todos. Nenhuma lágrima, nenhum sentimento de culpa, nenhum remorso. Apenas a sensação de dever cumprido para com aquele que os deixava. Pesarosos, mas não abatidos; sentidos, mas não desesperados. Um clima que pouco se pode verificar em cerimônias semelhantes. Um clima que pouco se encontra até mesmo entre pessoas de fé em despedidas fúnebres. Diante de tanta solenidade e esperança, confesso que não tive coragem de perguntar se aquela família fazia parte de alguma igreja.


Já fora da capela, o neto nos contava do quanto gostava de assistir aos jogos de futebol sentado ao lado do avô, e do quanto o velhinho torcia pelo Vasco da Gama. O rapaz também nos contou que o avô há quatorze anos convalescia das sequelas de um AVC que havia deixado o seu querido avô tetraplégico e sem fala. Do quanto era ativo antes da doença, e do quanto passou por este longo e traumático período sem revolta ou pessimismo. Falava também do trabalho incansável da sua avó, que praticamente sozinha, dedicava ao convalescente todo o amor, dedicação e cuidado que ele necessitava.

Isso me fez voltar à realidade e pensar novamente no velho dilema da natureza humana, que está expresso em toda a sua extensão na beleza poética e dramática do livro de Jó, na Bíblia Sagrada: a antiga pergunta do por que pessoas boas e inocentes sofrem? Uma pergunta que vem acompanhando a humanidade desde os seus primórdios. A inquietante dúvida que até hoje nem a ciência, em toda a sua progressão, tampouco a religião em toda a sua profundidade, puderam nos apresentar qualquer resposta minimamente aceitável, ou que pelo menos nos deixe esperançosos de que um dia saberemos.

Imediatamente voltei meu pensamento para a capela, para as pessoas que ali estavam e para a situação que se apresentava naquela hora. Num raro momento de lucidez, assim como que atingido por um raio de luz edificante, pude compreender que esta é uma pergunta para a qual a resposta jamais será encontrada no “por quê” ou nas indignações e revoltas que a ele se seguem, e sim no na expectativa contagiante do “como”.

Do como alguém que vive nesse mundo egoísta e insensível, que só se permite contabilizar o lucro imediato, conseguiu exercer por incansáveis e longos quatorze anos, ainda que permanecendo imóvel e mudo, o carisma de granjear carinho, respeito e admiração entre todos os familiares e pessoas à sua volta?

Do como uma família inteira conseguiu, não somente preservar viva e exemplar a memória das realizações e conquistas do seu patriarca, fazer com que as novas gerações, que não presenciaram esta caminhada, o tivessem em tão alto grau de estima e consideração?

Do como é que uma pessoa, também idosa, deixa de lado as suas fadigas, os problemas inerentes à sua idade avançada e abre mão da própria vida e favor de preservar feliz e confortável uma outra vida, que tão somente pode se fazer presente, sem manifestar uma participação ativa ou produtiva pelos conceitos vigentes na sociedade atual.

Bem-aventurado o avô do meu amigo, porque agora descansa em paz. Bem-aventurada essa família que soube tão bem abençoar o estimado ancião com a sua assistência contínua, e que, conta disso, por quatorze anos pode gozar da bênção da sua gloriosa presença.

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