Sinais sabáticos que curam II

Cura em Siloé, Palma Giovane em 1592
Mas, voltemos agora o foco para o alvo do milaculum, aquele sobre quem se projetou o maravilhoso olhar de Jesus. Diz o texto que estava ali um homem deitado, Jesus vendo-o, perguntou-lhe: Queres ser curado? A palavra grega para dizer curado só aparece aqui no evangelho de João, neste capítulo 5 e também no capítulo 7, verso 23. Que palavra é essa? A palavra higies.

Façamos um pequeno parênteses aqui: Esculápio era o Deus da medicina no mundo grego, filho de Apolo e da Ninfa Coronia. Esculápio teve uma filha chamada Higies, Higéia ou Higia, que significa saúde, cura. Entre os romanos, higies virou salus, termo de onde deriva nossas palavras: são, saudável, saúde e salvação. Mas quem era esse rapaz a quem Jesus oferece a possibilidade de uma vida mais sã? O texto diz que ele jazia no poço, juntamente com uma multidão de enfermos. A palavra grega para dizer enfermo no texto é asthenéia: fraco, que também quer dizer sem força. Paulo usa muito esse termo, como em II Co 12.9: O meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.

A-sthenos : sem vigor, sem força. Aliás, em português asteniaé um termo usado na medicina para designar uma fraqueza orgânica, sem perda de capacidade muscular. Quando há perda muscular a palavra usada é miastenia. Daí a palavra neurastenia: fraqueza do cérebro. Ora, vejam que curioso: Um comentarista citado pelo biblista Leon Dufour, defende a tese de que se tratava não de um paralítico, mas de um neurastênico, irritadiço, enraivecido. Será por isso que ao ser perguntado por Jesus sobre se queria ou não a cura, ele joga a responsabilidade no outro: Ninguém me ajuda, ninguém me põe no poço quando as águas borbulham! O fato é que, neurastênico ou não, há ali uma impotência com consequente isolamento, essa barreira que parece sempre tão intransponível.

Jesus usa uma sequência de verbos, de convites à ação, capazes de despertar aquele homem, de tirá-lo desse isolamento. Lembrando o Cardeal Carlo Maria Matini no diálogo com Humberto Eco, no belo livro “Em que creem ou que não creem”. Poderíamos dizer que também aqui Jesus não faz apelo a nenhuma escola filosófica, a nenhuma discussão de ideias, mas simplesmente apela a uma espécie de inteligência que é dada a cada um de nós para compreender o sentido dos acontecimentos e orientar-se:
Levanta, toma o teu leito e anda...

Levanta...
Detalhe o verbo grego erguero, levantar, é usado nos evangelhos para se referir à ressurreição de Jesus. Levanta! O homem é capaz de ultrapassar a si próprio, como diz Heschel. Ele é parte do mundo, mas é maior do que o mundo. É condicionado por uma série de fatores, mas é tocado por exigências incondicionais que o convidam a elevar-se acima do povo, do ego, da terra, do próprio tempo. Levanta os olhos! Levanta, sacode a poeira, como diz a canção popular. Ressuscita! Pare de rodopiar sobre si mesmo. Sai dessa doença. Segundo Leloup a palavra hebraica para dizer doença, significa aquilo que não circula, que está paralisado. Tanto que o dom de uma vida sadia, exige uma vida justa. Daí o aviso de Jesus: cuidado para não cair novamente nesse mal!Entrar no círculo virtuoso e sair do circulo vicioso.

Toma o teu leito...
Toma o teu sofrimento. Toma a tua cruz. Toma a tua dor. Faze-o um despertador existencial à dimensão de profundidade de você mesmo e da realidade. A desgraça nos aproxima de Deus, quando pede de nós uma operação alquímica de transformação para que o sofrimento nos abra ao mistério e não nos submerja no desespero.

E anda....
No antigo Testamento frequentemente a relação com Deus é descrita como um andar com Deus: Enoque andava com Deus, etc. O verbo empregado aqui em João é peripatew, lembrando o método pré socrático de fazer filosofia: peripatético. Ou seja, andando, caminhando. Tomar o leito sem andar é afogar-se na dor. Andar sem tomar o leito é fuga.

Levanta, toma o teu leito e anda! 

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