Quarteto sinistro I

É imprescindível que você leia o Salmo 91

A foto ao lado tem circulado na Internet através do Facebook com a legenda corrompida do que diz o versículo sete deste salmo: Caiam mil a teu lado, e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido. Quero deixar claro que não estou o compartilhando, apenas ilustrando  o que à primeira vista não parece possível haver qualquer tipo contestação, uma imagem que fala por si. A foto realmente evoca o melhor sentido de confiança em uma proteção
individual, que não se pode dar outro nome a não ser milagre. Mas eu, como pregador do evangelho, tenho que dizer que é uma interpretação equivocada, descontextualizada e infiel ao texto bíblico. E pediria a paciência de vocês para fundamentar meus argumentos, que são longos e podem ser entediantes.

Em primeiro lugar este é um dos salmos mais lidos nas horas da aflição, e é mais do que sabido que tem ajudado muita gente a enfrentar e superar suas crises. Eu mesmo já recorri a ele diversas vezes, e voltarei a recorrer sempre e quando a barra pesar pro meu lado. Não é a toa que este é o salmo preferido nas Bíblias abertas nas nossas estantes. Assim funciona a leitura devocional. Na hora que estamos lendo a Bíblia de forma penitente, em nossa mente está sempre presente a ideia de que as promessas contidas ali foram feitas exclusivamente para nós. Temos a sensação de que o salmo foi escrito justamente para nos consolar naquela ocasião específica. E a época da Páscoa de favorece bastante este tipo de sentimento. Mas esta é a hora em que é preciso fazer uma abordagem não tão suplicante e mais consciente.

Quando fazemos uma leitura mais consciente, isenta de cargas emocionais, quando vamos às raízes do texto, percebemos que muitos dos assuntos ali tratados não se encaixam especificamente ao nosso caso. Esse salmo, por exemplo, fala da recompensa de um justo, que na hora da aflição penso que sou eu, mas que, conscientemente tenho que reconhecer que esse justo é uma pessoa com quem não tenho qualquer semelhança. Não sou em absolutamente nada parecido com ele. Logo em seguida, o salmo fala de uma proteção da qual o homem mais justo que se conheceu não foi merecedor, pelo contrário, em vez de caírem dez mil à sua direita, ele foi o único a cair. Por esse e outros motivos é que temos que estar atentos a esses dois momentos da leitura bíblica. Um momento é a hora de refúgio da aflição, de buscar consolo na tribulação e livramento nas tentações, o outro é a hora da reflexão madura, da avaliação do concreto, do cotidiano, de meditar na mensagem que a Bíblia quer nos revelar através das experiências de pessoas levaram Deus a sério, e que não o buscavam somente, como muitas vezes fazemos, nas horas de necessidade.

Sempre foi bem vinda essa ideia de ter um Deus de prontidão, atento à nossa segurança e de olho nos inimigos e perigos à nossa volta. Nós fazemos questão de crer em um Deus senhor do universo onipotente, que domine soberano sobre o macrocosmo, mas quando estamos doentes queremos que ele deixe tudo e esteja ao nosso lado na cama. Talvez o motivo de hoje pensarmos assim, mesmo aqueles que nunca foram católicos, seja a forte influência que a doutrina dos anjos da guarda pessoais tem estabelecido por séculos. Contudo, no judaísmo antigo isso era uma ideia pulsante, esse salmo traz consigo a essência dessa doutrina consagrada por São Tomás de Aquino. No versículo onze ele diz: aos seus anjos Deus dará ordens a teu respeito para não tropeçares com teu pé em pedra. Um tipo de proteção individual e exclusiva que seria assegurada àqueles que, aos olhos de Deus, eram considerados justos. Enquanto que aos demais reconhecidamente ímpios como eu, cabia-lhes apenas a ruína. Esta é uma doutrina consensual e que acomoda bem o pensamento de muita gente, pois além de mostrar uma credulidade piedosa em Deus, ainda concede a ele a honra que lhe é devida. Praticamente todos os judeus que viviam naquela época, ao lerem esse salmo, diziam a mesma coisa: essas promessas são pra mim.

Essa teologia, aceita e estimulada pela monarquia hebraica, seguia o seu curso muito bem, com suas orações intermináveis, salmos que expressavam confiança e a expectativa de um livramento incondicional que proliferava nas liturgias. Cultos repletos e festas consecutivas se multiplicavam. Até que apareceram os profetas escritores. Homenzinhos estranhos, que através das suas mensagens radicalmente subversivas colocaram em cheque a justiça dos chamados justos, a sinceridade das celebrações e a idoneidade dos cultos. Tais profetas vieram denunciar que não era por causa da sua justiça que eles estavam gozando de boa situação, e que isso não era sinal da proteção divina, uma vez que, aos olhos de Deus, essa justiça não existia. Sua prosperidade era fruto da exploração dos mais fracos. Muitos passando muito mal, para que poucos vivessem tão bem.

Mas esses profetas faziam suas denúncias numa esfera superior de poderes. Eles não iam pra Central do Brasil encher os ouvidos dos pobres e sofridos transeuntes. Eles iam para frente dos palácios, para os lugares onde aconteciam as decisões, era ali que pregavam a sua mensagem. Ao que parece, não é exatamente o que está acontecendo aqui. Não estamos pregando para líderes políticos. Pouquíssimos de nós tem essa influência política ou esse poder de decisão. Nós que pregamos do púlpito, dificilmente falamos para gente desse escalão. Nesse caso, deveríamos pensar que estamos de fora das denúncias e que os profetas não falam diretamente a nós.

E a Bíblia mais uma vez intervém. Aparece o livro de Jó, que além de contrariar toda a teologia da retribuição de louvores com bênção, que era vigente na época, vem colocar todos os orantes na contramão dos salmos litúrgicos. Jó vem dizer, baseado na sua própria experiência, que o justo também sofre, e que coisas muito ruins acontecem a pessoas boas e inocentes, que a vida não é tão simples como imaginamos ou desejamos ou mesmo como está escrito em alguns salmos.

Quando ouço certas músicas do repertório Gospel e alguns sermões de pastores televisivos, tenho que confessar que é uma tentação muito grande pensar o quão bom seria se fosse assim: que tomou Doril, a dor sumiu. Que tendo Jesus, não há tribulação que resista. Eu tenho que admitir que gostaria que fosse desse jeito mesmo. Que trabalheira me pouparia aceitar que é toma lá dá cá. Eu jamais pregaria uma mensagem desse tipo, com gosto tão amargo. Eu passaria a acreditar em tanta coisa. Por exemplo, que essa incursão no morro do Alemão e a invasão da Rocinha iriam resolver definitivamente o problema da violência no Rio de Janeiro. Eu ia acreditar que é pela força dos blindados e pela morte dos traficantes que a paz viria a se estabelecer. Que Deus nos faria caminhar sobre os cadáveres dos adversários, livres de todo mal que a eles sobreveio. Esse é o tipo de confusão que nunca devemos fazer,: tomar uma palavra que é própria para levantar o caído e dar forças ao debilitado, e aplicá-la com intuito de destruir tudo que nos contraria à nossa volta, inclusive pessoas pelas quais Jesus também morreu. Exatamente como a mensagem que a foto quer mostrar. (continua)

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