Desdobrando a escada

Escada de Jacó, William Blake
Eu afirmo a vocês que isto é verdade: vocês verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem. Jo 1,51. Leia Jo 1,45-51

Em honra ao nome de meu pai, que se vivo fosse estaria fazendo hoje cento e doze anos, vou me permitir fazer uma analogia entre o Primeiro e o Segundo Testamentos. Vou me esforçar ao máximo para tentar repetir o que ele mais fazia, e o fazia muito bem, pois esta era uma característica marcante nos sermões que pregava,
nas inúmeras igrejas que ajudou a fundar. Diga-se de passagem, indiferentemente da sua denominação. Na contabilidade da sua vocação, igreja só tinha um nome, Igreja de Jesus Cristo. Não é que para o meu espanto os céus conspiraram em meu favor. Vieram em meu socorro fazendo com que o texto do Calendário Litúrgico de hoje trouxesse uma referência a uma analogia de um tema que já foi citada no princípio este blog, e que curiosamente foi feita por João, o evangelista de quem meu pai herdou o nome. Uma das primeiras postagens deste blog tinha por título Escada de Jacó (http://amosboiadeiro.blogspot.com.br/2012/02/escada-de-jaco.html, e foi baseada na saga do patriarca narrada nos capítulos 25 a 29 do Gênesis, um texto que tem uma relação direta e indissolúvel com a chamada de Natanael descrita no capítulo primeiro de João.

Para começar, temos o próprio nome do discípulo, Natanael, que significa presente ou dom de Deus, e é disso que João quer nos falar. É desta maneira que João quer apresentar Jesus, como o dom supremo de Deus que está em Cristo. Ele faz isso através da citação de Moisés e dos profetas, que evoca a ansiedade da humanidade por Deus. Ele quer deixar claro que Jesus veio para suprir um anseio antigo, porque desde os tempos mais remotos a humanidade anseia por Deus.

Logo no primeiro contato Jesus diz que Natanael é o israelita verdadeiro, em uma clara alusão à transformação que Deus processa, fazendo com que o enganador, traiçoeiro e usurpador Jacó, se transforme em Israel, aquele que tem que lutar com Deus para não deixar que ele se vá de si, para que ele fique ao seu lado. Transformação essa que se dá somente depois que Jacó, completamente atormentado pelo desconhecido, em um lugar de demônios tem um sonho. Ele que sonha com uma escada que o conduz diretamente ao céu de Deus. Onde seus temores se dissipam, onde ele encontra Deus nos mais improvável de todos os lugares.

Como a palavra hebraica que foi traduzida por escada denota uma rampa de acesso a um lugar elevado, algo que os contemporâneos de Jacó se empenharam bastante em construir, como é o caso da Torre de Babel, também descrita no Gênesis. Ao reconhecer as medidas inglórias que o homem tem tomado para encontrar-se com Deus, Jesus se apresenta como sendo ele esta rampa, caminho, escada que leva o homem diretamente à presença de Deus. Em Jesus, o sonho de Jacó se concretiza plenamente, não pelo esforço humano, mas por uma dádiva de Deus. Israel não precisa mais sonhar, o caminho está aberto, o acesso agora é livre, o caminho já existe além do sonho. Natanael é o israelita que confessa sem a falsidade de Jacó que Jesus é o enviado de Deus para redimir Israel, e fazer com que todo povo tenha acesso aos céus.

A pergunta de Natanael a Filipe, embora possua grande margem de preconceito, antecipa a dificuldade que Jesus teria para se fazer crer, e as próprias palavras de Jesus, quando disse que nenhum profeta é aceito em sua terra natal. Pode de Nazaré vir coisa boa? O ministério de Jesus não poderia ser de forma alguma mais fácil do que o dos profetas que o antecederam. Nem mesmo a simplicidade da sua mensagem, traduzida na mais linguagem mais próxima do povo faria diferença. A única forma de Israel aceitar Jesus como enviado de Deus é sendo verdadeiro, deixando de lado a falsidade e a própria superstição de uma tradição que vê o mundo inteiro como um lugar de demônios que impedem a presença de Deus, e não permitem que o homem se chegue a ele.

Os céus se abrem, e Natanael enfim recebe o seu presente. Tão somente porque creu, assim como Jacó, ele viu anjos subindo e descendo sobre o Filho do Homem. A escada de Jacó se desdobra diante dele, apresentando-se como uma nova realidade viável, incondicional e gratuita. Agora, mais do que nunca Natanael e todo Israel de Deus podem experimentar o que Jacó experimentou naquela noite fria, escura e amedrontadora: que através de Cristo, Deus está presente em todos os lugares, por mais que a nossa realidade demoníaca se esforce para negar.

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