Do palhaço à palhaçada

Cegos de Madri, Julio Pomar (1929-)
Assim o meu povo se ajunta em grande número para ouvir o que você tem para dizer, mas eles não querem pôr em prática o que você diz. “Ele fala bonito” — eles dizem, mas o que querem é ganhar dinheiro. Para eles você não passa de um cantor de canções de amor ou tocador de harpa. Eles ouvem o que você diz, porém não fazem nada daquilo que você manda. Porém, quando acontecer tudo o que você diz — e vai acontecer mesmo —, aí eles ficarão sabendo que um profeta esteve no meio deles. Ez 33,31-33

Sem dúvidas Ezequiel é de longe o mais enigmático visionário profeta de todo o Primeiro Testamento. Nascido em Jerusalém de uma família de sacerdotes, viu sua cidade ser conquistada e foi um dos exilados da primeira leva. Já no exílio, recebeu a notícia de que uma de suas profecias se cumpriu, justamente a que mais o aterrorizava: a destruição total do Templo de Jerusalém. Não é sem motivo que suas visões que falam de luzes mirabolantes, objetos que se movem para todos os lados sem tocar no chão e que provocam ruídos estrondosos, foram confundidas por Von Daniken como sendo o testemunho de uma conspiração alienígena. Com estes agravantes fazendo pressão ao seu chamado profético, não é de se estranhar a sua linguagem chula, que, por vezes, beira as raias da ofensa moral, principalmente quando compara o povo de Israel a uma prostituta de um nível tão baixo, que necessita pagar os seus amantes para se relacionar com eles. Alguns versículos do seu livro, como o Ez 23,20, não encontraram respaldo em qualquer pregação que se tenha feito de um púlpito até hoje, devido, é claro, aos seus termos de baixíssimo calão.

Mas este profeta é muito mais do que imprecador ambulante. Ele realmente toca em pontos fundamentais da mensagem profética, explicitando as diversas situações de como ela é recebida pelos ouvintes. Na realidade, Ezequiel é um crítico da mensagem profética, e faz um esforço enorme para torná-la mais compreensível, de modo a não deixar dúvidas quanto à sua gravidade e urgência. Ele expõe as várias situações para as quais dirige a sua mensagem de uma forma didaticamente repetitiva, para que absolutamente ninguém possa dizer que não a obedeceu por não tê-la entendido. E é justamente por isso que, como nos apresenta o texto acima, recebeu pouco crédito, e foi muitas vezes ridicularizado pelas pessoas que o ouviram pregar.

O que aos olhos da consciência crítica comum não passa de um grande desperdício de tempo, é de fato a característica mais marcante da profecia. É o atestado de forma cabal de que ela foi proferida e se fez presente antes de acontecer o mal que ela denunciou. O povo pôde não ter se dado conta naquele momento, mas depois eles ficaram sabendo que um profeta de Deus esteve no meio deles. Isso era tremendamente admirado pelos povos vizinhos, que ao contrário dos seus magos, prognosticadores, necromantes e adivinhos, que faziam uso de visões alucinatórias e práticas ocultitas para proferirem seus prognósticos, os verdadeiros profetas de Israel valiam-se tão somente da sua consciência crítica e da sua capacidade em analisar situações para fazerem as denúncias dos acontecimentos futuros. Eles podiam não saber exatamente o que Deus queria, e aí estava a maior angústia do chamado profético, mas eles tinham plena convicção daquilo que Deus não queria de forma alguma. Conhecendo os rígidos critérios de Deus e constatando a ausência total da justiça, não poderiam concluir senão o pior futuro para aquela nação.

Contudo, mesmo que a minha admiração por este profeta seja extrema, tenho que admitir que ele foi superado pelos profetas do nosso tempo. É duro ter que reconhecer que o velho Zaca foi passado para trás por pregadores que nem de longe viveram experiências tão dramáticas quanto as suas. Que ele foi superado por pastores que jamais experimentaram a décima parte do ônus da sua profecia. Por visionários que enxergam mais precisamente e com muito mais detalhes a vontade de Deus para o povo. Ezequiel com toda a sua vocação profética nunca foi capaz de dizer quem ia se casar com quem. Até onde vão os seus registros, não se nota qualquer declaração de prosperidade ou a ordenação de uma bênção, por mínima que seja, sobre a vida de pessoa alguma.

Das duas uma: ou os profetas atuais de fato colocaram Ezequiel e os demais profetas no chinelo, ou tudo isso que vemos atualmente não passa de uma grande comédia pastelão. Ou os profetas antigos estão se revirando de inveja nos seus túmulos, ou estão embasbacados com a total falta de senso que existe em nosso tempo. Para agravar de vez a situação, Ezequiel deve ter lamentado muito menos sentir que o seu ministério não passou de grande palhaçada para o povo do seu tempo, do que está lamentando agora os aplausos e venerações com que são recebidos os palhaços do nosso tempo, quando no exercício daquilo que tem a coragem de chamar de vocação pastoral.

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