Da culpa à responsabilidade

Desabamento da Torre de Siloé, Tissot
Sermão sobre Lucas 13 de 1 a 9, pregado em 23 de maio deste ano, por ocasião da Semana de Oração Pela Unidade dos Cristãos, na paróquia Martin Luther da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, no Rio de Janeiro. 

Este é um texto complicado, não é mesmo? Primeiro porque faz alusão a dois episódios completamente desconhecidos do restante da Bíblia. Não encontramos noutro lugar qualquer citação sobre a morte desses galileus, como também não existe outra narrativa sobre a queda da tal torre. Esse texto faz parte de uma série de narrativas exclusivas da investigação, segundo ele próprio, acurada, pois deve ter usado fontes desconhecidas dos outros evangelistas. Se não fosse ele nós nem ficaríamos sabendo desta
chacina, e até onde eu sei, a Bíblia nem menciona que na piscina de Siloé, onde Jesus mandou que o cego de nascença lavasse os olhos, existia uma torre.  

Bom, como eu disse, o texto começa complicado, mas aos poucos ele vai se complicando mais ainda. Inicialmente a conversa girava em torno da chacina de grupo de galileus por ordem de Pilatos, quando praticavam algum tipo de sacrifício expressamente proibido. E a primeira impressão que se tem da cena é que havia pelo menos dois grupos diferentes de pessoas. Um grupo era composto por aquelas pessoas que foram relatar a Jesus o acontecido. Pessoas que estavam tomadas de certa comoção pela morte trágica dos seus compatriotas. Tomadas não somente por compaixão, mas como também por um indisfarçável sentimento de culpa pelo fato de não poderem esboçar qualquer reação contra este atentado, por não poderem fazer absolutamente nada. Era muito arriscado manifestar-se contrário aos desmandos do Império Romano. Por outro lado, havia um segundo grupo, o grupo daqueles a quem Jesus adverte com veemência. O grupo que se empenhava em justificar a chacina. Logicamente que o que os galileus fizeram não foi um sacrifício comum em Israel, os costumeiros sacrifícios judaicos eram permitidos por Roma. Eles deveriam que estar realizando alguma prática muito ilegal, daí a indignação do próprio Pilatos. Para os romanos aquele sacrifício deveria ser algum tipo de heresia, e para os judeus, uma manifestação de idolatria.

Esse grupo, pelo que dá a entender a reação de Jesus, deveria estar imaginando que a morte trágica dos galileus era uma consequência natural do seu erro, assim como um castigo sumário de Deus pelo mal que eles praticavam. Eles deveriam inclusive estrar questionando o sentimento de culpa do outro grupo, e a atitude de procurar justificativas para o injustificável, me corrijam os psicólogos de plantão, é também uma forma de mostrar culpa. O que Lucas relata com rara sensibilidade são dois grupos, que embora se comportando de modos completamente diferente, experimentam o mesmo sentimento. Neste caso dá no mesmo, sentir-se incapaz ou caçar culpados são notórios sintomas de sentimento de culpa.  

Então, formou-se ali um belo dilema, já não havia mais como haver consenso sobre o julgamento daquela situação. O ambiente já estava por demais tumultuado, e é aí, no meio do ambíguo conflito, que Jesus vem falar sobre uma figueira que não dava frutos. Vocês já tentaram imaginar a loucura que foi essa cena? As pessoas se aproximando de Jesus e dizendo: Olha Jesus, aquele canalha do Pilatos mandou executar alguns galileus, e Jesus respondeu: Eu sei, mas tinha também uma figueira que não dava fruto. Imagino que eles devem ter se entreolhado e com cara de espanto retrucaram: Mas Jesus, aqueles homens foram mortos e você vem falar de uma árvore? E Jesus replica: Mas acontece que a figueira também ia ser cortada. 

Jesus era mestre em mudar o rumo prosa, como se diz no interior. Em desviar o foco da questão. Certa vez, para algumas pessoas conversavam com ele, mostrando preocupação com as necessidades básicas da vida, roupa e alimentos, Jesus disse: Olhem para o céu. Outra vez, quando ele estava sendo questionado pela sua reputação, pelo nível das pessoas com quem andava: Jesus, você só anda com prostitutas, bêbados e publicanos? Ele aí diz: Um homem que tinha cem ovelhas e perdeu uma. Será que ele fazia isso por mero acaso, ou será que ele tinha alguma intenção velada. Será que não era para desviar o foco da questão com um propósito muito mais elevado? Quem sabe não foi para que as pessoas enxergassem aquela tragédia por outro ponto de vista. Para que pudessem avaliar aquela e as demais situações trágicas com outros olhos.

Quando estamos muito comprometidos com um problema, é muito comum não conseguirmos ver nada além do próprio problema. Não falo somente dos problemas individuais, sobre os quais temos algum controle, mas principalmente dos problemas globais, que fogem totalmente à nossa alçada. Estou falando de pessoas que possuem capacidade de indignação, pessoas para quem até mesmo os episódios mais distantes, se tornam um grande desassossego. E não há como o cristão ser diferente, não se preocupar com isso. As nossas meditações e orações tem obrigatoriamente que abordar temas como os deslizamentos de Angra, os terremotos do Haiti e do Chile, e mais anteriormente, o tsunami, agora a tragédia da serra, e o fato mais recente, a chacina de Realengo. A consciência humana, quando se vê envolvida com tragédias, fica atônita querendo dar respostas e fazer algo, porque ela não pode receber estas notícias simplesmente com o intelecto, como mera informação. As tragédias são um apelo muito forte, e quando não encontramos respostas, um sentimento ruim toma conta de nós pela própria incapacidade de não poder fazer algo, o que nos joga a todos nas fatais consequências da culpa. Numa uma culpa inexplicável, sem envolvimento direto, mas que se arrasta atrás de nós até que aconteça outra tragédia e nos faça esquecer da anterior. E assim vamos vivendo vagando de tragédia em tragédia, de culpa em culpa. E é a esse coração atormentado pela culpa, que tenta culpar a si ou ao outro, que Jesus quer falar. Porque Jesus sabia, que por mais que tivéssemos consciência do perdão de Deus, não estaríamos blindados contra esse sentimento de perplexidade. Ele sabia muito bem que, de uma forma ou de outra, tomaríamos sobre nós as consequências da culpa, e eu gostaria de falar de algumas dessas consequências na continuidade dessa breve meditação.

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