Da culpa à responsabilidade II

Desperatio de Giotto
Leia Lc 13,1-9
A primeira consequência da culpa é aquela que Dietrich Bonhoeffer chamou de DESPERATIO, que é sempre mal traduzida por desespero. Digo mal traduzida porque pouca gente liga a palavra desespero à sua raiz e ao seu significado real. Para muitos, o desespero está sempre associado a uma atitude tresloucada e insana de revolta que se executa contra alguém ou alguma situação. Mas na sua raiz a palavra desespero significa renunciar a toda esperança, cujo sinal é a apatia generalizada, uma total falta de medidas e recursos. Ter desesperança é estar desprovido de qualquer esperança. Quando uma pessoa possui ainda o recurso da rebeldia e da indignação, ainda não se pode dizer que ela está completamente tomada pelo

desespero, mesmo na insanidade ainda há traços fortes de esperança.

Outra diferença entre o DESPERATIO de Bonhoeffer e o que chamamos de desespero, é que enquanto o desespero questiona as circunstâncias, o destino e as pessoas envolvidas, no DESPERATIO são questionadas a graça e a providência de Deus. Não é novidade alguma constatar que em meio a uma situação extremamente desesperadora, a maioria dos cristãos, quando não encontra forças para tomar uma medida no sentido da superação, procura logo saber por que Deus está permitindo que ele passe por aquilo. E é exatamente aí que o DESPERATIO rouba do cristão toda alegria nas promessas contidas na Palavra de Deus, é quando ele passa a negar qualquer experiência boa com Deus no passado mesmo recente. Mas isso ainda não é tudo, àquela culpa inicial vão se somando culpas já esquecidas voltam a nos atormentar, pecados já perdoados voltam a nos confrontar. É onde a pessoa começa a achar que o seu pecado é tão grande que não pode ser perdoado, quando ela se encontra em um inferno tão profundo que o braço de Deus não pode sequer tocá-la. É aqui que a graça é subestimada, onde eu começo a achar que Deus nunca me amou e que nunca esteve comigo. Diante disso passamos a nos considerar as mais infelizes de todas as criaturas de Deus. Quando nos encontramos no DESPERATIO, nos recusamos sequer a falar da nossa culpa com Deus, quanto mais confessá-la. Pra que? Ele não vai me ouvir mesmo, é um total desperdício.

O que normalmente fazemos nas provações extremas, como diz a linguagem popular, é armar um barraco com Satanás. É brigar, discutir, amarrar, exorcizar. Insistimos em querer saber por que ele nos escolheu para afligir desta maneira. Vocês não acham curioso que em seu livro, Jó jamais tenha trocado uma palavra sequer com Satanás? Jó jamais o interpelou, nunca lhe exigiu respostas, ou cobrou-lhe explicações. Ele dizia sempre: A minha causa está diante de Deus. É com ele que eu tenho que resolver, porque se eu não resolver com ele, não resolvo com mais ninguém. Em meio a um dos maiores embates teológicos da Bíblia Jó faz a sua maior declaração de fé em Deus, naquele que considero o versículo mais trágico de todo o Primeiro Testamento. Jó 13,15 diz o seguinte: Ainda que ele me mate, nele esperarei. Esta pra mim é a declaração de fé definitiva daquele que quando Deus tarda ou diz não, não briga com Satanás, nem fica correndo atrás do apostolo, do missionário nem do bispo. Espera pacientemente por qualquer resposta. O que dizer de Paulo com seu espinho na carne? Ele nunca considerou a possibilidade de devolver o espinho ao seu verdadeiro dono. Em vez disso foi tentar resolver o seu problema com Deus e ainda recebeu como resposta um sonoro não: Por três vezes orei ao Senhor para que me tirasse o tal espinho. Sabe o que ele disse? Não vou tirar espinho algum porque a minha graça te basta, Paulo. A minha graça te basta.... Nós sempre cantamos essa música entusiasmados: é bastante pra mim a tua graça, mas nos esquecemos que na realidade ela foi um não rotundo.

O que Paulo e Jó fizeram dificilmente fazemos quando estamos em aflição ou em culpa. Mesmo que pareça impossível, é preciso entender que por trás de todo o nosso infortúnio existe um Deus todo Poderoso que está conosco sempre, que abriu mão da sua divindade para sofrer e para chorar conosco. Que mesmo quebrados pelo desespero e pela dor, mesmo com todos os complexos de culpa, ele nos quer de volta. Mas quando não entendemos isso, caímos num estado bestial de DESPERATIO. Começamos a imaginar que Deus não fará nada por nós, e que a iniciativa tem que ser nossa, que nós devemos fazer algo de bom para recebermos a aceitação de Deus. Primeiro eu tenho que me acertar, primeiro eu tenho que deixar de fazer tal coisa, primeiro eu tenho que me arrumar, ficar limpinho, aí sim eu vou poder dizer: Deus, agora você pode me amar, agora você pode me receber de volta. Eu já paguei pelo meu pecado, eu não devo mais nada. O DESPERATIO foi o que restou de Auschwitz, nos judeus que sentiam vergonha por ter sobrevivido aos horrores do nazismo onde tantos compatriotas perderam a vida. Após séculos de conflitos internos na Bósnia, os sérvios formularam uma palavra apropriada para exprimir o sentimento destas pessoas.

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