Eu não, mas tu sim

Pesca maravilhosa, Hundertwasser (1928-2000)
Leia Ez 37,1-14 e Lc 5, 1-11
Um paralelismo interessante entre o Primeiro e o Segundo Testamentos é este texto de Lucas, que narra a primeira pesca maravilhosa, que é exatamente a leitura
sugerida para hoje pelo Calendário Cristão, e o Vale dos Ossos Secos, narrado no livro do profeta Ezequiel, no capítulo 37. Em ambos os casos está declarada a nulidade do esforço humano contra os desertos que se formam diante de nós, seres humanos, durante o transcurso da nossa vida. O que fica patente nos dois textos é que a própria realidade assume a responsabilidade de nos mostrar o quanto somos impotentes diante dos períodos de escassez que nos assaltam de tempos em tempos, e que absolutamente nada podemos fazer para evitar o tempo das “vacas magras” que sempre insiste em vir ao nosso encontro. A própria expressão “vacas magras”, que muitos ignoram ser oriunda da Bíblia, mais exatamente de Gênesis 41, e não é tirada do repertório da sabedoria popular, como pensam alguns, conta que desde tempos remotos existe na história da humanidade períodos em que os recursos se tornam tão escassos, que nem mesmo o homem mais poderoso da terra, que na época era o todo poderoso Faraó do Egito, pôde evitar, apenas, e quando muito, amenizar alguns dos seus efeitos.

Assim foi para Ezequiel a experiência no vale dos ossos secos, como foi para Pedro o resultado de uma noite de trabalho completamente vã. Podemos perceber que há também bastante semelhança entre a pergunta que Deus faz ao profeta, com a sugestão que Jesus faz a Pedro. Podem esses ossos voltar a viver? Porque você não volta para o mar e lança sua redes à direita do barco? Se as perguntas feitas a Ezequiel e a Pedro foram semelhantes, mais semelhantes ainda foram as suas reações diante delas, e mais impressionante ainda foi a semelhança das respostas. Um disse: não sei não, já o outro: trabalhei a noite toda e não pesquei nada. Contudo, o que realmente importa para nós agora não é exatamente o que eles disseram, e sim o que eles, muito provavelmente, estavam querendo dizer com aquilo que eles disseram. Peço licença a vocês para elucubrar algumas possibilidades.

Ezequiel poderia ter olhado para os ossos, ter feito uma cara de desdém, e ter tido: É ruim, hein?Pedro, da mesma forma poderia estar pensando: Tá maluco? Não viu que eu tentei a noite toda? Esta é a reação natural do incrédulo, daquele que diante da escassez não consegue enxergar outra possibilidade senão o fim. Aqueles que, como Jó, diante do infortúnio só sabem raspar as feridas com cacos. Não dá mesmo, está tudo acabado e não tem volta. Essa pode ser que seja nociva na esfera particular, pode ser até contamine, mas não agride aos outros diretamente, é mais de efeito pessoal e íntimo.

Talvez a resposta mais perigosa que Ezequiel e Pedro poderiam dar para a ocasião, fosse igual à resposta daquele indivíduo que alguns antropólogos atuais chamam de “burro com iniciativa”. Aquele que responderia, tanto para Deus como para Jesus, desta forma: Deixe comigo! Esse sim é um perigo coletivo. Ele está bem personificado naquelas figuras que se arvoram em repreender bactérias, em profetizar bênçãos e em determinar vitórias na vida das pessoas. Principalmente vitórias sobre o incontrolável e sobre o inevitável. Sinceramente eu não saberia dizer a quem eles estão enganando mais, se aos outros ou se a si mesmos.

Mas para o nosso bem e para nosso entendimento, a Bíblia registra fielmente a resposta de Ezequiel e de Pedro, que se sobrepostas soaria com algo mais ou menos assim: Eu não sei Senhor. Tu o sabes. E obedientemente debaixo da tua sabedoria, eu lançarei as minhas redes. Esta não é somente, como foram as respostas anteriores, mais um atestado da nossa incapacidade. É muito mais do que isso. Além de uma declaração lavrada de submissão à vontade de Deus, é também o reconhecimento de que somente ele tem poder sobre o inevitável. Que somente ele tem o poder de mudar as circunstâncias. Mesmo que elas não sejam mudadas, ainda que elas prevaleçam, somente ele pode nos fazer atravessar os inóspitos desertos da nossa vida sem traumas ou sequelas. De nada adianta nestes casos a minha sabedoria. De nada vale para esta situação o esforço de uma vida inteira. O salmista há muito traduziu esta realidade em palavras duras, mas consistentes com a verdade: Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes. (Sl 127,1-2ª)

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