Profetismo, o bíblico e o atual IV

Isaías recebendo a visão,
na Igreja Luterana São Mateus,
em Charleston, SC, USA
Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim. Então, disse ele: Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. Então, disse eu: até quando, Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores, e a terra seja de todo assolada, e o Senhor afaste dela os homens, e no meio da terra seja grande o desamparo. Is 6.8-12

Com o início da profecia clássica estabeleceu-se mais uma questão. Israel estava acostumada com os profetas extáticos, indivíduos que se apresentavam vestidos com peles de animais e um largo cinto de couro, que faziam os seus oráculos em um estado de êxtase contagioso,
em meio a cânticos e danças, por vezes flagelando-se com seus instrumentos de corte. Contudo, dependiam da piedade alheia e estavam comprometidos demais com a religião do templo, local preferido de suas pregações, pois era onde angariavam mais esmolas. De uma hora para outra, o povo se vê desafiado pela pregação consciente de homens que até então eram tidos como pessoas comuns, saídos do nada, mas que conseguiam colocar seu dedo diretamente nas feridas da nação, expondo-as como sem possibilidade de paliativos para a sua cura. Profetas que anunciavam um fim iminente, não mais como um agouro ou maldição, mas como consequência das injustiças e iniquidades praticadas ali. Profetas cujas denuncias não poderiam ser abrandadas com esmolas ou sacrifícios, apenas pela conversão irrestrita aos desígnios de Deus. Enquanto que a mensagem dos extáticos privilegiava Israel como nação eleita por Deus para ser a sua esposa, os profetas clássicos diziam que Deus há muito havia abandonado este casamento, e que o motivo era o adultério com deuses estrangeiros. Israel não parava de se prostituir, pois em cada colina, em cada campo e em cada lar essa prostituição era visível. Mais do que palavras, estes profetas deixaram documentos escritos como prova cabal do processo que o próprio Deus instaurara contra a infidelidade daquele povo.

Os profetas clássicos ficaram conhecidos como profetas maiores, Isaías, Jeremias e Ezequiel, e profetas menores, os demais profetas escritores. Uma distinção que não levou em conta a importância da sua mensagem, senão a quantidade de textos escritos. Uma avaliação mais acurada iria distingui-los como profetas pré exílicos, os profetas que atuaram durante o exílio babilônico e os pós exílicos. Isso sim nos daria a dimensão exata da sua mensagem, pois esta estaria diretamente ligada à sua época, ao seu destinatário e aos eventos que faz alusão.

É exatamente aqui o início da tensão entre o verdadeiro e o falso profeta. Os clássicos censuravam os extáticos por serem mentirosos, impostores, que faziam predições por dinheiro, que agradavam o rei, que também falavam em nome de outros deuses, e que, pregando paz e prosperidade, faziam o povo esquecer o pacto firmado com Deus no Sinai. Mesmo assim não negavam que estes tivessem sonhos e visões autênticas, a censura voltava-se contra os seus oráculos distorcidos da verdade. Tamanha era a indignação dos profetas clássicos contra a iniquidade, que aliando isso ao temor que tinham de Deus, acabaram concluindo que os profetas extáticos nada faziam senão anunciar a mensagem que um espírito de enganação, que vindo da parte de Deus, se propunha a enganar o povo para que este não se viesse a se converter à mensagem dos profetas clássicos, que aos olhos destes era incontestavelmente verdadeira.

Este é um dado no mínimo curioso à nossa compreensão. Deus envia seus profetas com mensagens claras e verdadeiras, mas também permite que haja a falsa profecia, que mesmo anunciada como se fosse sua, serve apenas para ludibriar o povo. Tentemos nos colocar no lugar desses profetas fazer uma avaliação da situação em que se encontravam. Ter que pregar uma mensagem dura de denúncia contra os erros dos seus amigos, parentes próximos e das pessoas que mais ama neste mundo, sabendo de antemão que elas já estão condenadas porque não ouvirão a sua mensagem, e mesmo aqueles que a ouvirem não entenderão, a ainda os que a entenderem, não crerão e não serão salvos. Não foi sem motivo que indistintamente todos esses profetas tentassem de ao máximo se livrarem deste oneroso encargo. Não foi também sem motivo que eles passaram por terríveis crises existenciais. Mas sem sombra de dúvida, foi o que deu resultado positivo, o que conseguiu preservar o plano de salvação original de Deus. Não é a toa que eles conquistaram esse lugar nas nossas pregações atuais, nos nossos parâmetros de conduta e, em especial, na nossa gratidão a Deus pelas suas vidas. (continua)

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