Felizes os que tem fome (e sede de justiça)

Aparição de Cristo aos pobres,
 Aleksandr Andreyevich Ivanov (1806-1858)
Se com respeito à primeira bem aventurança, Lucas é mais abrangente que Mateus. Nesta, que trata do problema dos famintos, Mateus extrapola as fronteiras da carência alimentar, estendendo as palavras de Jesus a todos os que são feitos carentes pela injustiça. Podemos dizer que esta é a mais humana de todas as bem
aventuranças, porque não se refere a uma situação local ou a uma circunstância específica. Ela denuncia todas as formas de carência que empurram o ser humano para os limites da morte. Jesus diz que bem aventurados são todos aqueles que estão prestes a morrer se a sua carência não for imediatamente satisfeita.

Basta um olhar superficial do mundo à nossa para vermos quem são as pessoas que vivem nos estertores da morte. Basta uma rápida reflexão para entendermos que esta bem aventurança é dirigida apenas aos que vivem sob intenso risco de perderem as suas vidas pela falta do que é mais essencial e básico, pela ausência total de comiseração, pela negação enfática da sua condição humana e pela subtração flagrante dos seus direitos como pessoa. É bem possível que muitos da comunidade de Mateus, composta em sua maioria por pessoas que foram expulsas de Jerusalém após a destruição do templo, vivessem sob estas ameaças. É bastante provável que nos primeiros anos da igreja primitiva, os seus membros, ao ouvirem estas palavras, se conscientizassem de que eram eles esses bem aventurados, e reconfortados, se empenhassem mais ainda em pregar o evangelho.

Era esta a proposta inicial do movimento iniciado por Cristo. Era justamente esse o futuro que os cristãos poderiam esperar para si. Não podemos dizer jamais que foi algo inesperado ou ocasional, pois era a meta que Jesus havia tratado com minúcias e com o seu próprio exemplo. Ser cristão era esperar que as perseguições, afrontas, injustiças e martírios fossem consequência natural do seu ministério, exatamente como aconteceu no ministério de Jesus. Basta que nos lembremos do seu sermão sacerdotal nos trechos em que o evangelista João estas advertências. Lembrem do que eu disse: “O empregado não é mais importante do que o patrão”. Se as pessoas que são do mundo me perseguiram, também perseguirão vocês.

O que mais preocupa é a posição que a igreja tomou diante dessas ameaças. O primeiro sinal de um confronto é imediatamente divulgado ao mundo e providências são tomadas no sentido de que a perseguição a esses cristãos deixe de existir, e isso é feito sob pena de sanções retaliatórias de governo de países que se confessam também cristãos. A não ser por uma ou outra perseguição pontual, como a que acontece atualmente no Iraque, ou de algum missionário que ousa descumprir as leis locais para ser fiel ao seu chamado, todas as demais perseguições existentes hoje tem origem nas nossas igrejas cristãs.

Diante disso, devemos concluir com tristeza que não há mais entre nós bem aventurados. Uma vez que a bem aventurança se destina aos que estão sob risco, não tendo quem os socorra, ela não se aplica de forma alguma ao nosso caso, que vivemos um cristianismo tranquilo, com igrejas de portas abertas em praças púbicas, programas de televisão em horário nobre e campanhas para arrecadação financeiras bilionárias. Isto tudo só faz negar o princípio básico de que ser cristão é no mínimo estar do lado do que está faminto e sedento de justiça, quando não se assume como o próprio objeto da bem aventurança.

O mundo que aborrecia Jesus era bem diferente do mundo em que vivemos hoje. O mundo que levou um inocente e justo ao limiar do sofrimento suportável, mudou radicalmente. Antes eram os inimigos de Deus que exauriam as suas forças na tentativa de anular o seu plano de salvação. Hoje, são os salvos que fazem de tudo para deixar de fora aqueles por quem também Cristo honrou em si a bem aventurança da carência em todos os seus níveis. Restam-nos como consolo as suas próprias palavras: Se o mundo odeia vocês, lembrem que ele me odiou primeiro. O mundo vocês vão sofrer; mas tenham coragem. Eu venci o mundo. Ele venceu aquele mundo, há de vencer também o nosso.

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