Almas derramadas no lugar certo

E sucedeu que, perseverando ela em orar perante o SENHOR, Eli fez atenção à sua boca, porquanto Ana, no seu coração, falava, e só se moviam os seus lábios, porém não se ouvia a sua voz; pelo que Eli a teve por embriagada. E disse-lhe Eli: Até quando estarás tu embriagada? Aparta de ti o teu vinho. Porém Ana respondeu e disse: Não, senhor meu, eu sou uma mulher atribulada de espírito; nem vinho nem bebida forte tenho bebido; porém tenho derramado a minha alma perante o SENHOR. I Sm 12ss
Oração de Ana, Frederic Leighton (1830-1896)
Existem diferenças profundas entre a queda de uma pessoa, quando essa pessoa cai sozinha, e quando ela entrega a sua queda a uma consciência maior do que a sua. Não importa aqui o motivo da queda. Seja esta queda causada por um tropeço moral, dificuldades financeiras, por problemas de saúde, por alguma perda afetiva ou mesmo pelo fato do seu estado de espírito estar abatido sem um motivo aparente. Estou tentando dizer que não é o motivo não faz a diferença, e sim para onde nos direcionamos ao cairmos.

Desde muito cedo na igreja tentaram me fazer crer que a decisão entre essas duas alternativas é de cunho estritamente pessoal, e que oscilava entre os sentimentos do remorso e do arrependimento. Onde o remorso faria apenas com que o caído maldissesse as circunstâncias, as pessoas à sua volta ou o próprio destino. O arrependimento não, este sempre levaria em conta um firme propósito de mudança. Eles até tinham alguns exemplos para me dar, como a diferença que detectaram entre Judas e Pedro. Pedro se arrependeu, foi perdoado e viveu. Já Judas teve apenas remorso, não foi capaz de encontrar o perdão e por isso se enforcou. Não é muito coerente esse raciocínio, pois se o tivesse seguido à risca, Judas não teria enforcado a si e sim a outra pessoa, quem sabe a Pedro?

Penso que a diferença no direcionamento da queda pode fazer com a pessoa caia em si ou caia fora de si. Aquele que cai em si busca alternativas viáveis, tem esperanças concretas e vive antecipadamente situações melhores, sem a ilusão de que do nada surgirá de repente seu resgate. Tomemos como base as decisões do filho pródigo na terra distante quando caiu em si e de Jó em meio a sua aflição. O filho pródigo diz: Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. Jó por sua vez pensa completamente diferente: Eu sei que o meu “vingador” vive e por fim se levantara sobre a terra. Vingador é a tradução correta para o termo hebraico Go-el, e não redentor como imaginou São Jerônimo.

Até mesmo na vida de Jó podemos notar essa diferença acontecendo em dois momentos isolados. A primeira reação, já citada, se deu quando ele ainda conhecia Deus só de ouvir falar. Mais tarde, quando conseguiu ter uma visão mais acurada de Deus, ele confessou: Tu me perguntaste como me atrevi a pôr em dúvida a tua sabedoria, visto que sou tão ignorante. É que falei de coisas que eu não compreendia, coisas que eram maravilhosas demais para mim e que eu não podia entender.

Mas onde entra a oração e o choro de Ana na nossa meditação?Agora, porque o caso de Ana é mais típico ainda, pois além da amargura que sentia pelo seu estado, ainda tinha o marido e a outra esposa do marido a fustigá-la impiedosamente com injúrias. É justamente essa a situação em que uma consciência superior pode fazer toda a diferença. Na sua entrega submissa Ana não estava contabilizando as suas perdas, de modo a que pudesse ser influenciada negativamente por alguém.

Ana estava totalmente mergulhada na esperança que vislumbrava algo que nem Alcana e nem Penina com os olhos da mais pura razão poderiam ver. Diante dessa visão o seu coração era um misto de choro e de riso, um estado em que parecia estar fora de si. Bêbada, como intuiu seu marido.

Ana reconheceu a sua própria miserabilidade, mas não saiu por aí atirando farpas em todas as direções. Ela permaneceu firme no propósito de confiar unicamente naquele que podia fazer algo por ela. Se a esperança se concretizasse, muito bem. Caso contrário ela morreria nessa esperança, contudo, sem ter que passar um dia sequer pelo ridículo de ser flagrada andando atrás de ilusões frustrantes.

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