O que é SOFRIMENTO? I

Amós, Naum, Ezequiel e Daniel, John Singer (1856-1925)
Alegro-me nas aflições e nas angústias, ousou Paulo escrever aos coríntios. (IICo 12.10) Seria o cristão um estoico para fazer apologia ao sofrimento? Como foi que o sofrimento, tantas vezes considerado como maldição no Primeiro Testamento, se tornou bem aventurança no Segundo? Diferentemente de muitas correntes de pensamento o cristão vê todo o sofrimento através
da paixão de Jesus Cristo, e por isso o sofrimento para ele é coisa muito séria. Não o minimiza, mas não vê nele um mal absoluto.

Os lutos, as derrotas, as desilusões e as calamidades fazem por se elevar em todas as culturas clamores e lamentos. Os gemidos frequentes deram ocasião ao surgimento de um gênero específico de literatura: as lamentações. Tais gritos se elevam à divindade como um clamor de socorro e providência, e toda uma ladainha é composta com a finalidade de se obter uma resposta imediata, que nem sempre vem e quase nunca é satisfatória. O juízo proferido contra o sofrimento é sempre o mesmo: é um mal indevido. É certo também que o sofrimento é universal, como bem expressou o escritor do livro de Jó: O homem, nascido de mulher, tem vida breve, mas tormentos em quantidade. (Jó 14.1) A cultura judaico cristã se mantém na máxima que sabedoria e saúde andam juntas, pois a saúde é um benefício de Deus, que pelo qual deve ser louvado e suplicado. A contrapartida é a grande quantidade de salmos de doentes pedindo cura, de aflitos buscando socorro e de sofridos em busca de consolo. Mas ainda assim a Bíblia não é um livro que faz elogios à dor, mas sim ao médico e à cura, pois todo o seu Primeiro Testamento é uma intensa espera pela era messiânica que vem como tempo de cura, consolo, restauração da alma e ressurreição do corpo. Nela todas as desgraças públicas ou privadas, secas, perda de bens, lutos, guerras, escravidão e exílio são males dos quais se espera libertação. O Primeiro Testamento não conhece o sofrimento voluntário sobre o qual Paulo vai discorrer abundantemente em suas cartas.

Embora sensível ao sofrimento humano as Escrituras Sagradas não podem, como as religiões dos povos vizinhos, recorrer à solução que se apresenta no dualismo (bem e mal) dos deuses pagãos, o que foi a grande tentação para os exilados na Babilônia. A hipótese de que o Deus de Israel fora derrotado por um deus mais forte foi um pensamento execrado pelos profetas, que de forma alguma tentaram desculpar Deus, mas sustentar a sua soberania: Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas. (Is 45.7) Ao mesmo tempo, os profetas reafirmavam que, embora caótica, a situação ainda estava sob o controle total de Deus, pois da sua onisciência e onipotência nada escapa. Tocar-se-á a trombeta na cidade, sem que o povo se estremeça? Sucederá algum mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito? (Am 3.6) Contudo, a intransigência à mensagem profética desencadeou reações terríveis, segundo a lógica da mulher de Jó: Amaldiçoa teu Deus e morre.

Sempre houve explicações e motivos para os sofrimentos que prescindem de uma intervenção direta de Deus. Agentes da natureza e as doenças da velhice são normais aos homens. Mas há também no universo, potências malignas hostis, como o pecado que produz a desgraça. No nascedouro da infelicidade tem que se colocar o pecado. Mas, paralelamente a isso, há também toda uma tendência ao empenho de tentar se descobrir quem é a pessoa culpada, cujo pecado está por trás do infortúnio. Essa inconsequente caça às bruxas está bem tipificada e ilustrada nos “amigos” de Jó, e é eficazmente confrontada pela sabedoria do nosso herói.

A Bíblia convive com discrepâncias avassaladoras no tocante ao sofrimento, como a morte prematura do justo e a longevidade do ímpio. Mas este é o mundo verdadeiro que a Bíblia não tenta maquiar. Nem mesmo os profetas, símbolos máximos do conhecimento de Deus no passado, puderam entender este paradoxo, em que os justos são perseguidos e os ímpios exaltados. Mas estes homens de Deus nunca foram pessimistas e nunca se deixaram vencer pelas circunstâncias. Até mesmo nos profetas mais sombrios se descobre um indício de felicidade e de esperança. Naum, o mais inflexível de todos, como que num relance, abre uma brecha na sua inexorável denúncia para fazer uma recomendação de alívio no tempo do sofrimento: Tira água para o tempo do cerco, fortifica as tuas fortalezas, entra no barro e pisa a massa, toma a forma para os ladrilhos. (Na 3.14) continua

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