Um dia incomum

E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços. Gn 15.17
O caminho do fogo, Ed Anton (1975-)
Falar que existiram dias incomuns na trajetória do patriarca bíblico Abraão é algo que soa bastante redundante. Para um caldeu que na Idade do Bronze deixou para trás o crescente fértil da sua terra natal, para se aventurar por lugares de seca e fome constantes, o que mais podia ele esperar senão dias pouco comuns? Novidade é um elemento mais do que provável para aquele que se aventura na caminhada da fé, e com o pai da nossa fé não poderia ser diferente. Mas o que mais impressiona neste dia incomum citado neste pequeno e pouco comentado versículo do Gênesis é que não foi um dia incomum apenas para Abraão, que nesta altura dos acontecimentos ainda se chamava Abrão. Aquele, segundo a Bíblia, foi um dia incomum para todo mundo.


O que é comum após todo por do sol em todos os dias comuns é o avanço lento e progressivo da escuridão da noite vencendo a penumbra do crepúsculo. Mas não foi isso que aconteceu naquele dia: E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas. Aquela foi uma noite em que a escuridão pegou a todos de surpresa. Uma noite que, para quem não tinha uma explicação razoável da ciência, seria por demais assustadora. Uma noite para deixar apreensivo tanto Abrão com também toda a sua posteridade.

Uma das lembranças mais vivas e mais presentes na mente do semita antigo era a fornalha de ferro do Egito, de onde eles foram libertados: Mas o SENHOR vos tomou e vos tirou da fornalha de ferro do Egito, para que lhe sejais povo de herança, como hoje se vê. (Dt 4.20) Para eles essa era a representação mais esclarecedora daquilo que hoje chamamos de Inferno. Uma releitura deste texto a partir do Êxodo teria como conclusão que Abrão, amedrontado pela escuridão repentina, estava vendo a si, a sua família e a promessa de uma grande descendência engolida pela crepitante fornalha.

Em dias tenebrosos com esse, os hebreus recém libertos do Egito tinham apenas um pensamento: Deus nos tirou da fornalha de ferro do Egito para nos fazer padecer na fornalha de um deserto escaldante. Aqui neste texto Deus dá uma resposta estarrecedora a todos aqueles que temiam as noites tenebrosas. Deus responde ao grito apavorado dos que temiam o fogo da fornalha, também com fogo. Mas um fogo que não somente queima, mas que ilumina e caminha seguindo uma trilha predeterminada pelo próprio Abrão. Deus fez com que o tão temido e adorado Deus do Fogo lhe fosse submisso e lhe obedeça mansamente.

E o que o texto tem para ensinar a nós que não tememos mais as escuridões repentinas? Primeiramente o texto vem afirmar que nem mesmo a mais densa treva pode fazer com que o Bom Pastor, por um instante sequer, perca o seu rebanho de vista. O seu cuidado e atenção estão presentes em todas as situações, mesmo as mais tenebrosas.

Em segundo lugar, Deus sempre permite que encaremos os nossos maiores temores, para nos lembrar do quanto seria pior se não tivéssemos a ele como referência. O quanto andaríamos perdidos nas trevas da superstição.

A seguir, o que ele faz é usar precisamente o tal objeto tenebroso, contra o nosso próprio medo. Ele nos faz caminhar dentro da escuridão profunda guiados exclusivamente pela fé. Ele nos faz entrar na fornalha e permite que seu fogo nos queime, mas não permite que o fogo nos consuma.


Finalmente ele usa as consequências do medo circunstancial para nos fazer fortes diante do medo instituído e generalizado. Ficamos com a certeza que é exatamente no meio da provação que nos sentimos mais próximos, mais acolhidos e mais encorajados. A noite escura servirá apenas para glorificar o dia de sol brilhante que se seguirá a ela.

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