Devorador de pecados

 Ilustração do Livro dos Mortos, 1040 a.C.
Assistindo uma série da TV a cabo me deparei com a figura mitológica do devorador de pecados. Uma pessoa, tradicionalmente um mendigo, que até o início de século passado, através de rituais, muita comida e bebida, fazia com que pretensamente recaísse sobre si os pecados de uma outra que havia morrido de forma abrupta, sem que tivesse a oportunidade de se confessar a um sacerdote, receber dele a extrema unção para poder reconciliar-se com Deus, agora já sem pecados.

Algumas aldeias mantinham seus próprios devoradores de pecados permanentemente de plantão. Sobre ele Howlett escreveu: O cadáver sendo retirado da casa, e posicionado em um esquife, um pedaço de pão que fica sobre o cadáver é dado ao devorador de pecados, também uma tigela, cheia de cerveja. Estes consumidos, uma taxa de seis pences foi-lhe dado por consideração de ter tomando sobre si os pecados do falecido, que, assim, liberto, não queria vagar após a morte.

O mito pode ter sido criado na Idade Média, mas o seu conceito é bem mais antigo, remonta à era dos faraós. O profeta de Israel, Ezequiel, dedicou todo um capítulo de seu livro para denunciar este conceito que, contrariando a responsabilidade pessoal, segundo ele, estava bastante em voga no seu tempo. O capítulo 18 se inicia com uma advertência contra um ditado corrente que era corrente e estava sendo acolhido pelo povo como um provérbio: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que embotaram? A respeito do ditado diz o profeta: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor, jamais direis esse provérbio em Israel. E ele continua dizendo: Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha; a alma que pecar, essa morrerá. Em seguida o profeta lista uma série de pecados de ordem pessoal: adorar ídolos, oprimir alguém, roubando, não atender a necessidade do próximo, desviar da justiça, não derramar sangue. Para finalmente declarar: Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus. Portanto, convertei-vos e vivereis.

Esse é o caminho que a Bíblia aponta. O único devorador de pecados é o amor incomensurável de Deus que nos constrange ao arrependimento. Ele é um devorador, que segundo Paulo, rasga o escrito da dívida, a nota promissória que nos liga intimamente ao pecado. Uma vez rasgada, ninguém poderá mais nos cobrar, nem o próprio Deus.

Mas me parece que algumas igrejas ressuscitaram o tal devorador. Se nem tanto, pelo menos o personificaram na figura de um pastor, bispo, apóstolo ou coisa semelhante, alguém que conserta o nosso relacionamento com Deus, apagando todo um passado de pecados e frustrações. Novamente temos entre nós alguém que está propenso a devorar os nossos pecados, de uma hora para outra, e sem qualquer restrição, em troca de uma boa quantia, que pode ser paga em dinheiro, bens, cheque predatado ou em cartões de crédito e débito.

O problema é que hoje a oferta já não se destina mais a saciar a fome de miseráveis, que, não tendo outros meios para saciá-la, se predispunham a comer, junto com o alimento que lhes era servido, o pecado do rico recém falecido. Hoje em dia, o devorador devora os bens da viúva, a poupança que estava destinada a pagar a faculdade do filho e o “trízimo”, ficando, ele sim, cada vez mais rico. Nessa sua nova versão, o devorador só ganha, e sem qualquer problema de consciência ganha muito, enquanto que os miseráveis pecadores só perdem. Perdem o dinheiro dos seus bolsos, seus bens e até seus salários; perdem o pouco de dignidade, porque vêm a necessitar da ajuda de outros até para pagar a passagem de volta para casa; perdem o juízo, porque quando não alcançam a bênção desejada, culpam a si mesmos pelo valor da sua oferta; perdem a sua fé.

Que falta que nos faz um Ezequiel, que mesmo no auge da sua loucura, ainda tinha mais lucidez que todos nós pastores juntos. Que falta que nos faz uma mente que mesmo inconformada com o pecado se seu povo, ainda possuía mais conhecimento de Deus que toda a teologia acumulada em nosso século. Que falta que nos faz um homem de Deus que desmistifique de vez toda essa baboseira que foi agregada ao evangelho. Que falta que nos faz um profeta que conseguia traduzir toda a vontade de Deus para as nossas vidas em uma simples frase de três palavras: Convertei-vos e vivereis.

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