Devedor implacável (final)

O gabinete do coletor de impostos
de Reymerswaele (1490-1546)

Leia Mateus 18
O capítulo dezoito do evangelho de Mateus talvez seja o melhor exemplo para entendermos o que Cristo quis dizer com “Não vim trazer paz, mas espada”. É onde ele bate de frente com inúmeros preceitos da religião judaica. Ele agrupa pequeninos, necessitados, ofensores e extraviados e diz como devemos tratá-los. Em uma declarada oposição ao judaísmo da época que possuía protocolos rígidos para designar procedências indignas e definir classes
impuras, Jesus determina que o seu discípulo tenha por obrigação contaminar-se com estes tais. Ao dar a uma criança a importância maior no Reino de seu Pai, Jesus estava dizendo que aos olhos de Deus, todos somos pequenos, e que a grandeza é alcançada quando nos vemos como irmãos e como filhos de um mesmo pai. A advertência contra o escândalo, que aqui é sinônimo de colocar tropeço, leva em conta a caminhada de cada um em direção ao Reino, que mesmo sendo uma decisão pessoal, nunca poderá ser um percurso solitário, sob a pena de jamais se alcançar o objetivo. Dom Helder compreendeu isso plenamente quando disse: Ai de mim se subir sozinho ao altar de Deus.

Embora a primeira vista possa parecer abuso de poder, a decisão de ligar ou desligar pessoas, tanto na terra quanto nos céus, é um processo que obrigatoriamente precisa tramitar por várias estâncias. Começa com a aproximação pessoal, a tentativa de reconciliação do ofendido com o ofensor. Para Jesus a busca e reconquista do extraviado é muito mais importante do que a segurança do que permanece fiel. A parábola da ovelha perdida citada neste texto deixa isso bem claro. Em segunda estância o motivo do possível desligamento deve ser levado ao conhecimento de duas ou três testemunhas. Quando o culto judaico necessitava de pelo menos a presença de dez pessoas, Jesus reduz a sua assembleia a um mínimo de dois ou três. Como última e derradeira estância o caso deve se tornar público, para que deixe de ser uma decisão pessoal e unilateral, e retornar ao foro competente, a quem Jesus efetivamente legou tamanho poder: à igreja.

Ainda que destituídos do poder desligar, Jesus não nos deixou livres da responsabilidade de tentar ligar, nem do bom encaminhamento deste processo. Todo o processo de ligação começa conosco. Diria melhor, começa em nós. A exemplo de Dom Helder, ninguém há de querer subir sozinho ao altar de Deus.

Mas se há certa liberdade quanto ao processo de ligar ou desligar, não se pode dizer o mesmo com respeito ao perdão. Quanto ao perdão Jesus nos deixa duas escolhas, perdoar ou perdoar. O processo do perdão é de uma radicalidade sem par. Jesus chega a dizer que se é a mão, o pé ou o olho que não nos permite perdoar, que os cortemos e lancemos fora, porque é melhor que sejamos ligados no Reino dos Céus mancos, manetas ou cegos, do que vivermos em perfeita saúde fora dele. O perdão pode não ser a única alternativa do ofensor, mas, com certeza, é a única do ofendido. Alguém já disse que Deus, mais ainda do que a insegurança, faz a opção pela morte daquele sofre a ofensa e está livre deste pecado, do que o extravio do que está em pecado por ter ofendido. A despeito do que o nosso pieguismo possa imaginar nesta hora, Jesus chamou isso de morte bem aventurada.

Para institucionalizar estes e outros tantos radicalismos Jesus encerra esta página com a parábola do devedor implacável, aquela que normalmente chamaríamos de parábola do credor implacável. Um homem que devia dez mil talentos é perdoado, mas não perdoa a quem lhe deve cem denários. Para fins de atualização monetária, um talento corresponde a trinta e cinco quilos de ouro, enquanto que um denário é o que se paga por um dia de trabalho, ou seja, um montante igual a três salários mínimos. Somente essa comparação já o faz muito mais devedor do que credor, corroborando com o título da parábola.

Ficam as perguntas: Como alguém pode se endividar tanto? Quem é esse que dá tanto crédito? Para a primeira pergunta só consigo pensar em uma resposta: Eu tenho esta dívida para com Deus. Se ainda não me tivessem sido dados motivos suficientes para que eu considere a obrigatoriedade do perdão, a matemática da parábola se apresenta como tal. Para a segunda pergunta a resposta é óbvia. Jamais explicarei a razão porque somente Deus. Porque nem eu mesmo acredito tanto em mim. O teólogo espanhol Antônio Pagola, que está sob um absurdo processo impetrado pelo vaticano, nos dá uma pista, e com ela eu encerro esta meditação: É curioso observar como Jesus, que fala constantemente do Reino de Deus, não chama a Deus de ‘rei’, mas de ‘Pai’.

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