Devedor implacável

Cobrador de Impostos, de Guido Reni
... e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus. Mt 16,19 – Mt 18,18 e, de forma análoga, em Jo 20,23

Em três ocasiões distintas Jesus fez aos seus discípulos mais íntimos essa enigmática declaração. A primeira vez, quando fazia uma avaliação da sua popularidade entre o povo judeu através da pergunta e resposta que se tornaram célebres: O que dizem os
homens ser o Filho do Homem? Tu és o Cristo, o Filho do Deus Vivo. A última, uma semana após a ressurreição, quando fez a sua primeira aparição ao grupo seleto de seguidores. Nessas duas oportunidades a abordagem do tema ligar ou desligar pessoas da comunidade, perdoar ou não perdoar faltas, que era uma função específica do rabino que dirigia a sinagoga, não focava uma situação em particular, mas versava sobre assuntos gerais, e curiosamente foram sobre estas versões que o Cristianismo mais fundamentou a sua conduta.

Desde muito cedo nos foi incutida a responsabilidade sobre a salvação do próximo. Aqueles que tem ou tiveram um ligação mais profunda com uma igreja evangélica tradicional hão de se lembrar da obrigatoriedade de estar envolvido com a evangelização como meta única da igreja. Para mim que tenho raízes na Igreja Metodista, a determinação de Wesley aos seus pastores e paroquianos: “nada fazer senão salvar almas”, soa tão alto como o martelo de meu pai batendo na bigorna. Não posso negar que este lema funcionou cem por cento, e que é responsável pela maior revolução religiosa em uma nação depois do Pentecostes. Também não pretendo eximir a igreja deste desafio instituído por Jesus aos seus apóstolos, e, por sucessão, a esta mesma igreja. Mas quero e devo dizer alguma coisa sobre esta pretensão que individualmente assumimos com relação à vida e ao futuro dos nossos semelhantes.

Quando interpretamos com seriedade estes versículos, baseados exclusivamente nas versões anteriormente citadas, entendemos que eles dizem respeito à nossa responsabilidade como indivíduos, e aí duas coisas inevitavelmente acontecem: ou caímos em um ativismo incontrolável, ou julgamos que o nosso ministério como cristãos não passa de um enorme fracasso. Dormimos e acordamos culpados. O vizinho da frente vai pro inferno porque eu não tentei convertê-lo a minha fé, e isso faz com que a mão de Deus pese dia e noite sobre mim. Disse anteriormente que é pretensão porque, pensando assim, me vejo na posição de ser o último bastião entre Deus e o próximo. Coloco-me como única possibilidade de Deus agir sobre a vida deste que mora tão próximo a mim. Sou, na realidade, o derradeiro recurso de Deus, sem mim ele nada poderá fazer. Em apenas um ato consigo cometer duas faltas graves. Superestimo a minha condição humana e subestimo o poder de Deus.

Se eu estivesse no lugar de Deus, conhecendo a mim como ele conhece, seria irresponsável a ponto de confiar a vida de uma pessoa por quem seu Filho também se sacrificou, a alguém tão falho e tão pecador quanto Sergio Duarte? Teria Deus um braço tão curto que não pudesse alcançar o meu próximo sem a minha interferência? Vem do próprio John Wesley, o fundador do movimento que Deus origem à Igreja Metodista, a resposta que é meu socorro nesta hora. A doutrina da graça preveniente elaborada por ele, me diz claramente que não sou eu quem está entre mim e meu próximo. Não sou eu quem pode transformar o coração do meu vizinho, se é que é o dele que precisa ser transformado. Essa doutrina me garante que o lugar entre nós dois só pode ser ocupado por Jesus, e que antes que eu esboce qualquer intenção na direção do meu próximo, Deus já está agindo poderosamente em sua vida. Me faz cair na realidade de que para que a aproximação com meu vizinho dê certo, a minha necessidade de conversão é maior do que a dele. Tira-me definitivamente do lugar de mediador entre meu próximo e Deus, e coloca definitivamente Jesus como o único mediador entre mim e ele e entre nós dois e Deus. Dietriche Bonhoeffer dizia: Eu preciso falar mais com Cristo sobre o meu irmão, do que com o meu irmão sobre Cristo.

Sei bem que se tentar transferir esta responsabilidade para a igreja, aparecerá imediatamente alguém para dizer: mas a igreja é você, e se sentirá coberto de razão. Mas ainda prevalece o fato de que ao indivíduo não foi dado este extremo poder de ligar ou desligar, nem a opção de perdoar ou não perdoar, porque aí sim, o peso do julgamento e a sentença sobre a culpa seriam insuportáveis. Esta é uma tarefa que somente a igreja pode assumir porque somente a ela foi dado este poder. Não posso e não devo me aproximar de alguém em meu próprio nome porque nem nome tenho para isso. Nas duas ocasiões em que Jesus tentou incutir a responsabilidade sobre ligação entre os céus e a terra, falava exclusivamente à igreja. Esta que, semelhante ao inferno, também tem portas que se abrem e fecham. Portas que permitem a ligação ou promovem o desligamento. Aí sim, entra a responsabilidade individual. Somos nós como indivíduos que abrimos ou fechamos as portas da igreja. Ela precisa estar aberta para que passe o miserável pecador, mas precisa se fechar para o modelo de pessoa que eu pretendo que meu irmão se transforme.

É exatamente aqui que começa a responsabilidade individual que somente o terceiro texto, que ainda não foi citado, vem nos confrontar. É aqui que a Bíblia revela quem é o devedor implacável, aquele que somente desliga, que somente fecha portas e jamais perdoa. Trataremos dele com a devida ênfase na continuação desta meditação.

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