Inferno: agora ou nunca

Dante e Virgílio no Inferno
de William Bouguereau (1825-1905)
Por mais que eu fuja dos temas que a Bíblia aborda apenas superficialmente, mais pessoas aparecem para me questionar sobre eles. Sempre adotei o princípio de não me aprofundar em assuntos em que a Bíblia não se detém para explicá-los com clareza, e as citações sobre inferno talvez esteja entre aquelas que mais apresentem lacunas na sua concepção. Estaríamos nós diante de um caso clássico em que o texto bíblico não oferece elementos suficientes para elaboração de
uma doutrina? Aliado a isso, também não sou daqueles que fazem uso de estatísticas bíblicas para sustentar argumentos, porém, neste caso, vou me permitir fazê-lo. Não seria sintomático que esta palavra, na tradução para o português mais recente, em virtude disso, mais bem elaborada da Bíblia que é a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, esteja contida apenas dezessete vezes?

Como o meu estado de inquietação hoje está mais elevado que o normal, por conta desta situação vou abordar esse inquietante assunto sem a menor pretensão de ser conclusivo. Peço a sua atenção apenas este esboço mal alinhavado de pensamentos.

Em primeiro lugar não devemos nos deixar impressionar pela grande quantidade de pessoas sempre prontas a tirar conclusões precipitadas sobre esse assunto. A Bíblia nos adverte sobre o juízo precipitado e impiedoso sob pena de sermos também julgados pelos mesmos critérios. Se ela fala assim sobre juízos simples, quanto mais não seria temerário julgar sobre temas tão complexos que escapam a nossa capacidade como o do misterioso inferno? Lembremo-nos de que uma besteira repetida por 500.000 pessoas continua sendo uma besteira.

Em segundo lugar a doutrina da condenação irrevogável já está sendo revista em vários casos. A Igreja Católica hoje vê com olhos bem mais complacentes as pessoas que cometem suicídio, e o fez após analisar vários casos em que padres lançaram mão deste recurso para escapar de insuportáveis torturas, como foi oi caso recente de padres brasileiros torturados pela ditadura militar de 64. Essa e tantas outras doutrinas foram eficazmente combatidas por Martinho Lutero em 1517, quando instituiu a Reforma na Igreja Cristã. Para fins de julgamento, o uso da palavra inferno é totalmente inconcebível nestes casos. Muitos deles podem sem considerados mártires, porque preferiram encarar a morte antes de renegarem a sua fé.

Quando se fala sobre a questão do suicídio, invariavelmente é citada a grande quantidade de pessoas que nos países nórdicos lançam mão deste lamentável recurso. Mas que autoridade temos nós brasileiros para julgarmos estas pessoas que arbitrariamente tiram as suas vidas, quando vivemos em um país cuja mortalidade infantil atinge índices astronômicos; apenas os assassinatos que são registrados, são em maior número que qualquer guerra ou revolução mostrada pela TV; o trânsito faz mais vítimas que qualquer epidemia que assola a humanidade? Ainda que trágico, é melhor deliberar sobre a própria vida, do que, sem a possibilidade de escolha, morrer de bala perdida.

Deixando de lado as especulações e voltando para o que se pode extrair da Bíblia, podemos observar que se traduziram por inferno duas palavras, cujos sentidos não querem especificar lugar de tormento eterno. A palavra SHEOL, descrita no Primeiro Testamento como Lugar dos Mortos, é um lugar de isolamento total, não há consciência, portanto, não poderá haver dor ou castigo. Foi exatamente a este lugar que Jesus desceu para pregar aos que dormiam, assim diz o nosso Credo Apostólico. A outra palavra é GUEHENA ou Vale da Carnificina. Lugar que fica ao sul de Jerusalém onde se sacrificavam crianças (Jr 19.5-6). Nos tempos de Jesus não era mais que um depósito onde se jogava, além de lixo, animais mortos para serem incinerados. Um lugar onde o fogo ardia visível e constantemente. Em ambos os casos não há referências à punição, e muito menos à punição eterna.

Por mais intensidade e quantidade que a Bíblia nos apresente condenações sumárias, a pré disposição de Deus em perdoar e abençoar é sempre maior. Em um dos textos em que a condenação extrema é mais evidente, e justamente por isso um dos preferidos dos mestres nesta doutrina, diz que Deus visitaria a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que o aborrecem. Palavras colocadas na boca de Deus, que mais tarde seriam consideradas como não inspiradas pelos profetas, que a exemplo de Ezequiel assim profetizaram: A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai, a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá sobre este. E quando queriam sem mais objetivos assim diziam: O Senhor me disse o seguinte: Por que será que na terra de Israel o povo vive repetindo o ditado que diz: “Os pais comeram uvas verdes, mas foram os dentes dos filhos que ficaram ásperos”? Juro pela minha vida — diz o Senhor Deus — que vocês nunca mais repetirão esse ditado em Israel. Pois a vida de todas as pessoas pertence a mim. Tanto a vida do pai quanto a vida do filho são minhas. A pessoa que pecar é que morrerá.

Contudo, mesmo nesta antiquada visão, Deus se apresenta mais pronto a perdoar do que efetivamente a condenar, porque que se mostra propenso a abençoar até mil gerações daqueles que o amam e guardam os seus mandamentos. Certo apóstolo dizia que Jesus veio para salvar os pecadores dos quais ele era o maior. Este foi um homicida frio e um implacável perseguidor da igreja, ou seja, alguém talhado para sofrer eternamente no inferno. Mas Deus na sua infinita misericórdia foi resgatá-lo para si superando a barreira do seu enorme pecado. Navalha de Occan é o princípio que diz que: Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor. Seria possível que qualquer postulado já escrito sobre a doutrina do inferno tem uma explicação mais simples do que: Onde abundou o pecado, superabundou a graça?

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