Um Deus violento (final)

Os Cavaleiros do Apocalipse, Vasnetsov (1848-1926)
As ciências que estudam o comportamento humano tem colaborado bastante com o pensamento teológico em análises de textos complexos. Juntos têm realizado descobertas que elucidaram de vez enigmas ancestrais retirando os mais intrigantes textos do incômodo rol dos indecifráveis mistérios de Deus, para colocá-los à luz da sua revelação. 

Hoje se consegue traçar o perfil psicológico do personagem bíblico como se ele fosse qualquer pessoa deitada no divã de um analista. Também se pode visualizar o seu contexto, como alguém que esteve presente no exato momento em que os fatos aconteceram. Estas ciências têm sido uma poderosa ferramenta na tradução e interpretação dos textos mais complexos, que até então tem desafiado a fé cristã nos seus conceitos mais fundamentais. Nem mesmo o cristão mais fundamentalista se sente confortável quando lê na sua regra máxima de fé imprecações do tipo do Salmo 137.9, que diz: Bem aventurado aquele que pegar suas criancinhas e bater com a cabeça delas nas pedras. Até mesmo o mais convicto ateu entende que aqui quem fala mais alto é o ódio profundo oculto no labirinto do coração dolorido, coisa bem própria da natureza humana, quer seja justificável ou não.

O que dizer então dos altos e baixos do livro que encerra a mais maravilhosa obra jamais escrita? Parece que o texto bíblico sofre das mesmas oscilações do comportamento humano. Após narrativas de tanto ódio e vingança que fazem a tônica do Antigo Testamento, encontramos um oásis de amor e de perdão nas palavras de Jesus Cristo, para em seguida deixarmos perplexos com extensão desmesurada desse amor descrita na inevitabilidade da graça através do ensinamento do apóstolo Paulo. Justamente quando se pensava que o tempo dos terrores divinos era coisa do passado, vem o Apocalipse e reacende mais ódio e mais vingança. Se a Bíblia tenta nos ensinar que o amor solidário e pacífico é a única arma contra a violência, então por que começa e termina incitando tanto ódio e intolerância? Por que tanta impiedade em nome de Deus?

Alguns pensamentos me assaltam nesta hora. Não podemos nos esquecer de que o primeiro Testamento fala de conquistas de território, cuja destruição do inimigo é incondicional, embora não seja justificável. Não podemos nos esquecer também de que Israel fora destruída pelo poder militar que reivindicara para si, quando pediu que um rei reinasse sobre eles. Acaso não teria o texto sagrado a intenção de nos mostrar que ser povo de Deus significa não ter poder militar algum? Não significaria que a paz virá tão somente através da equidade nas relações? Não poderia querer nos mostrar, fundamentada na mais cruenta realidade, o quanto é amargo o sabor da vingança e como é onerosa a violência?

Quando ouvia alguém dizer que na sua segunda vinda, Cristo não seria tão complacente com foi na primeira, o meu velho pai retrucava: O céu fez muito mal a Jesus, ele subiu perdoando e voltou condenando. Não quero ir para lá não. Ele não podia entender como alguém que subiu aos céus implorando a Deus perdão para os seus algozes, voltaria de lá de espada em punho dizimando os pecadores de forma impiedosa e avassaladora. É aqui que entra recurso que a Sociologia, Antropologia e Psicologia emprestam à Teologia. Qual era o estado emocional de alguém que, confiado nas promessas de paz, justiça e vida abundante, testemunha o genocídio de seu povo numa escala absurda? Que palavras seriam mais apropriadas senão aquelas para robustecessem a fé da igreja e paralelamente tentassem frear a fúria do inimigo, senão maldições e terríveis pragas? Pode ser que os romanos não se sentissem amedrontados com as duras ameaças contidas no Apocalipse de João, mas a igreja, em virtude delas, sobreviveu.

O mais curioso de tudo, é que as palavras usadas em vão por João para infligir temor aos inimigos estão servindo hoje para aterrorizar os próprios cristãos, principalmente aqueles cuja fé incipiente ainda se permitem duvidar da eficácia da salvação em Cristo. Contrapondo a salvação, o dom gratuito de Deus, com atitudes concretas em favor de uma igreja ou denominação, as lideranças religiosas tem conseguido que o povo de Deus responda com sacrifícios, assim como foi exigido no passado. Por meio de ameaças apocalípticas, encarceraram o evangelho em uma redoma de dúvidas e ansiedades.

A dúvida mais premente entre os cristãos atualmente diz respeito à certeza da sua salvação pessoal, e a sua ansiedade maior não é pela consumação do Reino, mas sim pela volta de Cristo. Embora também desejasse fervorosamente que Cristo voltasse, o cristão primitivo jamais teve dúvidas com respeito à sua salvação. Não havia entre eles qualquer questionamento acerca da salvação após a morte. Suas ansiedades manifestavam-se quanto ao livramento imediato da mão dos opressores. Perguntavam-se sim, que tratamento Deus daria àqueles que os perseguiam. Não seria a hora de nos perguntarmos o que Deus fará conosco quando obstruímos o caminho da justiça, pervertemos o direito do necessitado e colocamos sobre os ombros dos outros, fardos que nem nós mesmos podemos suportar?

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