Pão da vida - os desertores

Muitos o abandonaram, Emilia Cleopas (??)
... mas mesmo assim alguns de vocês não creem. Jesus continuou: — Foi por esse motivo que eu disse a vocês que só pode vir a mim a pessoa que for trazida pelo Pai. Por causa disso muitos seguidores de Jesus o abandonaram e não o acompanhavam mais. Jo 6,64ª;65-66. Leiam todo capítulo 6 do evangelho de João.

Embora grande, o grupo dos decepcionados não era de longe o mais radical e nem o mais indignado dentre os discípulos.
Havia outro grupo que ficou ainda mais revoltado com as palavras de Jesus no discurso narrado por João no capítulo 6 do seu evangelho, o grupo dos que o abandonaram. Em bom português, o grupo dos que o deixaram falando sozinho. Por causa disso muitos seguidores de Jesus o abandonaram e não o acompanhavam mais. Importante que se diga que Jesus continuou promulgando seu discurso, enquanto este grupo fazia a sua debandada. Importante frisar também que foram aquelas palavras o motivo principal, e talvez único, dessa debandada, e que não poderíamos escolher melhor representante para este grupo do que Judas, o mais indignado dentre todos os discípulos.

Assim como os doze, Judas havia deixado sua família, seu trabalho e tudo mais que era seu para seguir Jesus em seu projeto de pregar o evangelho, curar os doentes e libertar os oprimidos pelo mal. Qualquer julgamento que se faça deste grupo, aqui representado por Judas, deve considerar em primeiro lugar este dado. Todos eles eram pessoas que tinham deixado para trás projetos e sonhos, para atrelarem-se de corpo e alma ao projeto de Jesus, ao qual pretensiosamente ele deu o nome de Reino de Deus. Contudo, não é assim que eles foram e estão sendo julgados pela História. Vejam o exemplo de Judas, quanto preconceito foi instaurado desde então. O próprio João, colocando palavras na boca de Jesus, o chama de Diabo, coisa que sequer passou pela cabeça de qualquer evangelista ou mesmo de outro escritor bíblico.

Há de fato muito preconceito no julgamento de Judas. Vejam por exemplo o verbo grego paradoson, que somente é traduzido por trair quando se refere a ele, em todos os outros casos na Bíblia a palavra empregada na tradução é entregar, como podemos ver em Mt 17,22 - Mt 26,2 - Mt 26,24 e Mt26,45. Entregar aos sacerdotes uma pessoa que cometia um delito contra o Judaísmo era obrigação de todo bom judeu, e Jesus cometera vários, como profanar o templo. Que ninguém venha querer me convencer que foi pelas trinta moedas de prata, que valiam o salário de um mês de um operário não tão bem remunerado. O que era isso para quem tinha deixado uma vida para trás?

Este grupo se sentia exatamente como Judas, especificamente neste caso, quando Jesus exigiu que eles comessem da sua carne e que se bebessem do seu sangue. Esta era uma gravíssima transgressão, e que os colocaria diretamente dentro da maior maldição prescrita pelas leis judaicas de ingestão de alimento impuro e de contaminação com sangue. Os olhos da moderna Teologia enxergam a metáfora por trás das palavras, e, com total certeza, a comunidade para quem o evangelista João originalmente dirige este evangelho também. Mas não posso dizer o mesmo da totalidade dos discípulos de Jesus. São tantas as narrativas que nos dão conta de que eles não entenderam várias outras metáforas. Jesus teve que se dar ao trabalho de explicá-las, mesmo as mais simples e mais corriqueiras.

Mas ainda assim, mesmo que a igreja de João interpretasse corretamente o sacramento da Santa Ceia, o mundo romano à sua volta o rejeitava. Por ser o Cristianismo uma religião nova, cujos rituais, inclusive o da ceia, eram restritos apenas aos iniciados, eles entendiam que os cristãos se reuniam secretamente para comer o corpo e beber o sangue de um tal Jesus. Não foram poucos os perseguidos e nem desprezível o número dos que foram mortos por causa disso.

Aceitar este simples e inocente pacto representava o rompimento definitivo com a religião de seus pais, com a tradição milenar instituída desde Moisés e com a pregação recente e ainda fervilhante de João, o batista. O que será que Jesus estava pensando que era para radicalizar tanto assim a sua pregação? Melhor perguntando, o que eles pensavam que Jesus era? Assim como para os decepcionados, esta é a pergunta chave também para os desertores. Para eles, Jesus era o superjudeu, a mais nova e aprimorada versão de Moisés, o maior de todos os profetas, o sumo pontífice. Jesus era para eles a mais representativa presença de Deus desde a Arca da Aliança, mas não era o Senhor de suas vidas. Para aquele grupo Jesus não era definitivo, Deus ainda contava com o Judaísmo, assim como hoje contamos com as instituições, para salvar o mundo. Para eles Jesus era mais que muito bom, era ótimo, talvez excelente, mas não era tudo, e para aceitar esse pacto a excelência não é suficiente. Como dizia João Wesley: Todo cristão deve estar pronto para morrer, ou para pregar, ou ainda no melhor espírito de santo Agostinho:
Ser cristão não é conquistar Cristo,
mas deixar-se conquistar por ele.
Deixar que ele conquiste em ti,
que ele conquiste para ti,
que ele te conquiste
.

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