Ano Jubileu II

Uvas da Terra Prometida, Nicolas Poussin
Leia Pv 25,8-17
Para celebrar o Ano Jubileu eles precisavam primeiramente esquecer. Muito embora esta palavra na nossa língua tenha uma conotação negativa, pois é considerada como um desleixo por parte daquele que ter sempre em mente alguém ou alguma situação, nos preceitos bíblicos desta
data o esquecimento é fator primordial. No grego temos duas palavras que, embora para nós signifiquem coisas bem diferentes, derivam de um mesmo radical. Elas são amnésia e anistia, ou amnistia como se fala em Portugal. Ambas tem tudo a ver com esquecimento, seja pela perda permanente ou temporária da memória, que nos acostumamos chamar de amnésia, seja pelo esquecimento de uma falta ou delito praticado contra alguém ou instituição. Por estes motivos podemos constatar que estas palavras estão bem mais próximas do que imaginamos, e que são essenciais para entendermos o sentido exato das exigências básicas do mandamento divino quando da celebração Ano Jubileu pelos judeus. Pelo simples fato de se utilizarem de uma ideia tão forte, podemos concluir que o esquecimento neste caso abrangia todos os segmentos da vida em comunidade. O esquecimento de dívidas, de ofensas, de obrigações, de favores, de queixas, de mágoas, de preceitos legais, de compromissos era a exigência mínima para o novo recomeço que o Ano Jubileu vinha inaugurar. Para que este esquecimento fosse realmente completo ele deveria ser uma anistia seguida de amnésia, onde não houvesse qualquer ressentimento por parte daquele que perdoava, e não aflorasse qualquer sentimento de inferioridade por parte daquele que era perdoado.

Logicamente que nenhuma sociedade é tão altruísta a ponto de obedecer um mandamento como este, como se fosse uma consequência natural para se alcançar o bem estar comum. Nem mesmo um povo que havia sido milagrosamente recém liberto da escravidão. Para que fosse cumprido à risca, este mandamento deveria ter um peso infinitamente maior do que a simples esperança na justiça ou em dias melhores. Ele deveria partir de uma conscientização geral de que todas as coisas na terra são propriedade daquele ser único que detém toda a autoridade, inclusive autoridade para promulgar um mandamento com tal magnitude de alcance. Para tanto ele deveriam partir de um princípio que contrariava tudo o que era fundamental na adoração dos deuses dos seus vizinhos pagãos: a firme convicção de que o Deus de Israel e totalmente autossuficiente e não carece de cuidados nem oferendas. Eles tinham que saber de cor o Salmo 50 que diz: De tua casa não aceitarei novilhos, nem bodes, dos teus apriscos. Pois são meus todos os animais do bosque e as alimárias aos milhares sobre as montanhas. Conheço todas as aves dos montes, e são meus todos os animais que pululam no campo. Se eu tivesse fome, não to diria, pois o mundo é meu e quanto nele se contém. Acaso, como eu carne de touros? Ou bebo sangue de cabritos? Se o fundamento não fosse: Do Senhor é a terra e a sua plenitude, ficaria impossível qualquer tentativa de se levar adiante esta celebração.

Mas o povo também precisaria se lembrar. Lembrar-se de quando Israel efetivamente começou como nação. Quando eles chegaram a um local estranho e foram instalados em terras que não eram deles, de quando comeram alimentos que não semearam, de quando beberam vinho de uvas que não plantaram, pois estavam totalmente a mercê da vontade de Deus. Ou seja, a obrigatoriedade do perdão irrestrito tinha um fator pregresso, estava fundamentado na razão de que tudo que possuíam foi graciosamente dado por Deus, sem o que todo o povo ainda seria escravo no Egito, e mero servo de Faraó. Assim como receberam o inesperado, tinham que depositar toda a sua confiança no Deus que os havia sustentado até então. Isso não é nada fácil, sabemos bem. Como uma família que havia trabalhado tanto para garantir um futuro melhor para os seus descendentes, abriria mão de suas conquistas e voltaria praticamente à estaca zero, simplesmente porque um Deus sem templo e sem efígie assim o determinara? No papel é bonito. É muito inspirador saber que na história da salvação houve um precedente de justiça social que não se baseava no Comunismo ou no Socialismo de Classes. Como é revigorada a fé daquele que lê na Bíblia este trecho do Ano Sabático e medita nas suas palavras, tentando uma forma de se enquadrar de um jeito ou de outro no espírito da sua mensagem. Mas colocá-lo na prática e lavá-lo até as suas últimas consequências é que o problema. É exatamente por esta razão que Mood disse: Para ser cristão não é preciso muita coisa. Para ser cristão é preciso tudo.

Negando toda essa mensagem triunfalista que invadiu a igreja com expectativas baseadas em promessas infundadas e em interpretações convenientes das Escrituras, a hinologia antiga mais uma vez vem em socorro daquele que tem um mínimo de indignação diante dos absurdos teológicos pregados hoje em dia. Em meio a tanta certeza quanto ao futuro e tanta determinação de bênçãos, Katharina von Schlegel foi buscar em Provérbios 22,18-19 a inspiração par um hino que desconstróis toda essa ideia de um Deus que tem um futuro pronto e predeterminado. O hino fala que devemos ter confiança em Deus para entender os seus propósitos, e não porque um futuro brilhante e próspero nos aguarda. Diz o hino assim:
Prossegue, ó alma; o trilho é estreito e escuro,
Mas no passado Deus guiou-te assim!
Confia agora a Deus o teu futuro,
Que esse mistério há de aclarar-se enfim.
Confia, ó alma, a sua mansa voz
Ainda acalma o vento e o mar feroz!

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