Fugindo para Emaús (final)

Cristo em Emaús, Rembrandt
O que estou tentando dizer é que justamente quando estamos atravessando as estradas empoeiradas da nossa vida, quando estamos indo de um lugar comum para outro lugar comum, quando estamos fazendo as coisas mais simples do nosso cotidiano, que a vida vai nos apresentar as maiores questões das quais nós não podemos fugir. Questões sobre a estrada que estamos seguindo, sobre a comida que comemos, ela
nos faz mal ou bem? Questões sobre aquela pessoa estranha que cruzou o meu caminho. Questões sobre quem eu sou de verdade. Em outras palavras, é exatamente em tempos como esses que Jesus Cristo se dispõe a vir. Ele escolhe os dias em que a nossa vida é mais real, é mais crucial. Não quando estamos debaixo de uma luz celestial, ou sob o impacto de um movimento grandioso ou ainda quando atravessamos situações avassaladoras. Curiosamente ele quase nunca vem durante o transcurso de um milagre extraordinário ou de um sonho transformador como muitos pensam hoje em dia. Ele nos vem na hora do jantar ou quando andamos por uma estrada qualquer, e a prova definitiva do que estou afirmando é a forma consensual e repetitiva com que os evangelhos narram as suas aparições após a ressurreição.

Notem bem, Maria Madalena estava sentada na entrada do túmulo vazio e percebeu que uma pessoa estava atrás dela. Quem ela enxergou primeiramente? A figura de um jardineiro ou mesmo de um coveiro fazendo o seu trabalho diário. Depois, quando todos os discípulos, menos Tomé, estavam reunidos escondidos numa casa com as portas bem trancadas com medo das autoridades judaicas e dos romanos. Mais tarde, quando Tomé juntou-se a eles, Jesus veio em meio a uma discussão de posições e pontos de vista. Encontrou-se com Pedro após uma noite perdida de trabalho exaustivo, mas totalmente improdutiva. Depois, na praia, quando estavam reunidos em volta de uma fogueira comendo seus peixinhos assados na brasa. Temos também o nosso texto bíblico: dois homens que caminharam durante todo o dia, e famintos dividiam uma refeição comum com pão. Jesus não se aproximou deles nos grandes momentos das suas vidas, que com certeza houveram, mas quando as suas vidas se mostravam mais comuns e mais enfadonhas. Ele nunca se aproxima quando estamos no alto, mas sempre quando estamos no meio. No meio do povo, no meio das questões mais banais e corriqueiras que a vida nos reserva.

Os momentos que se tornam sagrados em nossa vida são sempre os momentos em que não esperamos algo novo ou acontecimentos espetaculares. São os momentos em que vimos as coisas que estamos acostumadas a ver com mais do que os nossos próprios olhos. São os momentos em que ouvimos as coisas que estamos acostumadas a ouvir com mais do que os nossos próprios ouvidos. São os momentos que revelam Jesus no rosto de um jardineiro, que revelam Jesus em uma pessoa que anda ao nosso lado sem que saibamos qualquer coisa a seu respeito. São momentos que revelam Jesus no simples gesto de partir de um pão ou em uma refeição igual a qualquer outra refeição. Os momentos se tornam sagrados quando ouvimos algo além do que o nosso ouvido alcança ou enxergamos coisas que somente os olhos da fé enxergam. Se não vivermos as nossas vidas como quem vive de umas férias até as outras, ou de uma fuga até a outra, mas como se cada momento fosse um breve intervalo entre um milagre precioso e outro milagre precioso, aí sim reconheceremos Jesus. Assim poderemos ouvir aquela voz imperceptível ao ouvido comum, talvez até pela primeira vez em nossa vida, dizendo: mesmo que você não mereça, mesmo que a sua vida pareça ser um sequências interminável de fatos comuns, mesmo que você não faça acontecer nada de extraordinário, eu tenho um propósito para a sua vida. Ainda que você tenha dívidas, ainda que você tenha medo, ainda que esteja desiludido e sem esperança, a sua vida é preciosa para mim. Apesar da sua indiferença, apesar do seu pecado, apesar da sua separação ou que se esconda em qualquer lugar, eu quero você de volta, eu aceito você como você é e como está.

Somente quando ouvimos essa voz é que passamos a crer que tudo na nossa vida tem sentido, sabem por quê? Porque passamos a crer que tudo está nas mãos de Deus. Porque passamos a crer que um dos nomes dele é perdão e o outro é amor. É exatamente por isso que eu acredito nessas histórias dos evangelhos que contam sobre Jesus vencendo a morte e voltando a vida. Jesus era o amor de Deus, ele esteve vivo no meio de nós e nem mesmo toda a nossa cegueira de seres humanos poderia prendê-lo na morte, porque nada neste mundo ou em qualquer outro mundo pode nos separar do amor de Deus. Dificilmente encontraremos algo em nossa vida que merece o aval de Deus. Mesmo os nossos melhores gestos de amor e amizade são sempre corrompidos por egoísmo e engano. Mas existe algo que podemos experimentar, algo que podemos vivenciar. Não é nada que fizemos ou que merecemos, mas algo que foi feito por nós sem que merecêssemos. Não a nossa vida, mas a vida daquele que morreu por nós, mas que voltou à vida. Essa é a nossa única esperança.

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