Agonia no Jardim

Agonia no Jardim, Rembrandt
 E, saindo, foi, como de costume, para o monte das Oliveiras; e os discípulos o acompanharam. Chegando ao lugar escolhido, Jesus lhes disse: Orai, para que não entreis em tentação. Ele, por sua vez, se afastou, cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava, dizendo: Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua. [Então, lhe apareceu um anjo do céu que o confortava. E, estando em
agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra.] Lc 22.39-44
Tendo Jesus dito estas palavras, saiu juntamente com seus discípulos para o outro lado do ribeiro Cedrom, onde havia um jardim; e aí entrou com eles. E Judas, o traidor, também conhecia aquele lugar, porque Jesus ali estivera muitas vezes com seus discípulos. Tendo, pois, Judas recebido a escolta e, dos principais sacerdotes e dos fariseus, alguns guardas, chegou a este lugar com lanternas, tochas e armas. Jo 18.1-3

Este é o nome frequentemente dado aos momentos de angústia que antecederam a paixão e morte de Jesus no final do seu ministério terreno. É uma expressão bastante usada por teólogos, pregadores compositores e artistas plásticos ao longo da história da igreja. É também uma expressão de consenso porque as Escrituras nos abrem brechas que nos permitem, de uma forma bastante nebulosa, entrever este trecho em particular da vida de Jesus, também chamado o Cristo. Contudo, uma investigação mais acurada nos textos indicados acima, e que expõem mais intensamente este capítulo crucial do ministério de Jesus, vai revelar que eles não abordam o tema Jardim e agonia em conjunto. Ou seja, no texto que fala em Jardim não existe explicitamente a agonia, e no outro que fala sobre a agonia não se encontra a palavra Jardim.

Não estou fazendo este comentário para mostrar erros na Bíblia, mesmo porque não é a Bíblia que faz esta ligação, e sim aqueles que a leem como um texto monolítico, isento das características dos seus autores. Muito menos para criar mais polêmica sobre um assunto que já se mostrou tão complexo. Muito mais do que revirar picuinhas o interesse aqui é mostrar as diferentes visões que os evangelistas tiveram de uma mesma situação, diferenças estas que foram assinaladas pela época, pela finalidade e pela situação em que os textos de Lucas e João foram escritos. Sabe-se que os estudiosos concordam que o evangelho de Lucas foi escrito por volta do ano 80 de nossa era, enquanto que o de João pelo menos vinte anos mais tarde. Muito embora para a história como ciência este intervalo não seja tão relevante, os acontecimentos da época e os destinatários para quem foram escritos fizeram toda a diferença. Nunca podemos perder o foco da invasão de Jerusalém e da destruição do Templo que ocorreu no ano 70, o grande divisor de águas da história de Israel e consequentemente da história da igreja primitiva, cuja sede situava-se ali.

Por tudo isso, João e Lucas escreveram este dois textos que, com o tempo, nos acostumamos a fazer uma leitura sobreposta, como se um completasse as informações que faltam no outro. É bem certo que este tipo de abordagem não nos dá a dimensão exata da mensagem que os evangelistas individualmente quiseram transmitir. Para Lucas, este é o momento em que Jesus mostra toda a fragilidade da sua humanidade. Embora Jesus já tivesse passado por situações de perigo iminente, esta era a que se mostrou definitiva. É o momento em que Jesus está prostrado, e de joelhos na terra é encontrado pelos soldados que vieram prendê-lo. Jesus mostra-se completamente a mercê de Judas e de seus acusadores, e impotente declara ser aquela hora a hora dos poderosos e do poder do mal. Talvez fosse esse o retrato fiel da comunidade de fieis a Cristo assistida por Lucas. Uma comunidade perseguida, vendo seus membros serem torturados e mortos, sem poder para esboçar qualquer reação. Lucas de forma alguma poderia apresentar um Jesus diferente, pois se o Mestre não tivesse sofrido e se sujeitado passivamente ao poder do mal em favor do Reino de Deus, eles também não precisariam fazê-lo, e igreja sucumbiria ante a falsa ilusão de viver um evangelho sem agonias ou perseguições.  

João, por sua vez, mostra um Jesus no controle total da situação, que se declara de peito aberto ser ele mesmo o Messias, coisa que preservara oculta durante todo seu ministério. Sem demonstrar qualquer temor diante do perigo, não questiona a vontade de seu Pai, que estava sendo consumada naquele ato. Quando Jesus assim se apresenta tão seguro de si, quem cai na terra de joelhos não é ele, e sim os soldados que vieram prendê-lo. Desprovidos de qualquer poder ou autoridade sobre ele, recebem a ordem de deixar livres os discípulos. Com o transpor do primeiro século e o esfriamento da expectativa da sua volta pra breve, a igreja precisava realmente adquirir uma nova postura. Mesmo sob ameaça ela tinha que levar adiante o desafio da mensagem do evangelho, e isso só teria efeito se Jesus fosse mostrado como aquele que tem, apesar das circunstâncias insistirem em negar, a última palavra e a autoridade sobre todas as coisas.

Pode muito bem ser inspiradora e tocante a imagem de Jesus em agonia num belo e florido jardim. Logicamente que não sou eu quem vai tentar anular esta figura criada nas mentes mais brilhantes que a arte já concebeu. Mas é meu dever dizer que por trás do romantismo que a cena nos transporta, existe a realidade de que o evangelho tem que ser pregado com coragem e autoridade, porque somente desta forma saberemos o grau das aflições que certamente nos sobrevirão. 

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