O que é INIMIGO? II

Saul atacando Davi, Guercino, em 1600
A luta de Saul contra Davi na Bíblia é o relato mais pormenorizado de uma inimizade pessoal e unilateral, pois somente Saul é inimigo. Ele se propõe a matar Davi e, com isso, se coloca em rota de colisão com um desígnio divino. O que motiva o seu ódio é tão somente a inveja por Davi ter sido escolhido por Deus enquanto ele, Saul, fora rejeitado. Por sua vez, Davi evita ser contaminado por este ódio, uma atitude que Cristo incita todo cristão a imitá-la, quando não for possível superá-la. Muitos dos amigos de Deus que tiveram que viver, cada um em um grau de intensidade, um drama semelhante ao de Davi, demonstraram sinais de um refinamento moral consistente.


O chamado de Deus levou estas pessoas a se libertarem do egoísmo, da vingança e da retaliação, inserindo-se plenamente no projeto de Deus, sem, com isso se perderem por caminhos que levam ao masoquismo ou a perda da sua identidade.

Mesmo que erradamente julgasse a si mesma detentora de uma conduta moral elevado, Israel experimentou algo parecido. Das muitas guerras infligidas a outros no afã da conquista, com o passar do tempo, a imagem do inimigo de Israel foi se confundindo com a de um opressor, e neste caso não havia como alimentar os antigos sonhos de poder, senão os de sobrevivência. Foi aí que o povo aprendeu que antes de querer ver o justo fortalecido, ele quer libertá-lo. Na realidade, Israel não era vencido pelo opressor, mas sim vítima de si próprio: Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas. (Jr 2.13) Sua derrota sem demora chegará, e o inimigo não triunfará sem motivo. Ele age em nome e por vontade de Deus para ensinar o povo de dura servis: Agora, eu entregarei todas estas terras ao poder de Nabucodonosor, rei da Babilônia, meu servo; e também lhe dei os animais do campo para que o sirvam. (Jr 27.6)

Mesmo após ter experimentado fragorosas derrotas Israel ainda subsiste, pois está ligado à antiga promessa. Esta persistência do povo de Deus em continuar existindo, mesmo que a partir de um pequeno grupo, o chamado resto de Israel, assinala duas coisas importantes: a importância que Deus dá às suas promessas e a negligência humana em não cumprir a sua parte. Isto nos faz entender que o tempo da plenitude ainda não chegou.

No que se refere ao tempo, já não se podia mais retomar as maldições que os salmistas imprecavam contra os inimigos do povo, e já não se podia mais usá-las em interesses particulares. Nem mesmo a respeito dos mesmos povos sobre quem originalmente foram lançadas. Na história se via mais conflitos ideológicos do que propriamente de interesse. O inimigo já não pretendia mais destruir Israel como povo, e sim convertê-lo aos seus deuses e costumes. Quando os macabeus retomam a tradição da guerra santa, lutam muito mais pelas suas leis do que propriamente pelas suas vidas: E os ameaçaram dizendo: Se sairdes e obedecerdes ao rei, nós vos deixaremos vivos. Mas eles responderam: Não sairemos nem obedeceremos ao rei, profanado o sábado. (I Mc 2.33s) Embora o objetivo fosse permanecer vivo, o povo não se confundia com estas duas possibilidades. Com consciência clara optava pela conservação da lei e das tradições, porque sem elas também não mais existiriam como povo.

Já não se governavam mais pelo princípio jurídico de Talião, que na realidade era um freio à vingança desmedida. Já não se imaginava mais Israel sobrepujando e destruindo os seus inimigos. Através das experiências negativas do revide, o povo chegou à luz divina que orienta os corações ao amor. Já nasce a consciência de que para ser perdoado por Deus se faz necessário antes perdoar o inimigo: Se você não tiver motivo, não seja testemunha contra o seu vizinho, nem fale mal dele. Nunca diga: “Vou lhe pagar com a mesma moeda. Vou acertar as contas com ele!”  (Pv 24.28s)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...