Cura sem fé II

Cura do paralítico de Betesda, Carl Bloch
O encontro de Jesus com o paralítico de Betesda é um marco na teologia cristã, pois ele derruba os dogmas que até então encurtavam tanto o braço de Deus, a ponto de impedi-lo de agir sob determinadas circunstâncias. Como ainda é possível que, depois desse encontro e de tantos outros que Jesus teve, se duvide da ação de Deus após a morte. Para muitos, a morte é um obstáculo intransponível, bem de acordo com o pensamento ateu que diz: comamos e bebamos porque amanhã morreremos, e a morte porá fim a toda nossa esperança.


O episódio deste paralítico serve também para contradizer a renitente doutrina da fé inconsciente. Ninguém pode alegar, após este texto, que existe uma predisposição na natureza humana em acreditar na ação divina, e que foi este tipo de fé que fez com que ele fosse curado. O paralítico não somente demonstrou que não estava imbuído de qualquer tipo de fé em Jesus, como também deixou claro que não tinha a menor noção de quem era aquele que o curou. Mesmo depois de sua cura ele ainda não teve a capacidade de dizer exatamente quem era Jesus. No seu diálogo com as autoridades Jesus não é nem chamado pelo nome que se dava ou por algum título concedido pelo povo, mas é tratado como “aquele que disse: toma teu leito e anda”.

É assim que a cura sem fé acontece: sem qualquer mérito, atitude ou virtude do enfermo, apenas pela graça de Deus. Uma cura que não se limitou a reparar um mal, ou a contemplar aquele que sofria há trinta e oito anos com compensações que o fariam esquecer a sua dor.

A cura desse paralítico começa com uma pergunta que sequer tem resposta: Você quer ser curado? Ela nem mesmo é recebida com euforia ou se fazia esperada como era o agitar das águas do tanque da Casa da Misericórdia, ou Betesda. Jesus recebe apenas a contrapartida da confissão de quem estava sofrendo mais pela falta de solidariedade do que propriamente pela sua antiga doença. Talvez esse fosse o tão esperado encontro de qualquer um com a real necessidade do paralítico. Talvez a sua vontade fosse apenas ser focalizado por um olhar. Talvez a sua avidez não fosse tanto por saúde, mas por uma simples atenção.

Levanta. Esta palavra no manuscrito grego é a mesma usada para dizer ressuscita. Jesus estava dizendo para o paralítico: sai do anonimato, levanta-te da obscuridade, impõe a tua presença. Faça-te reconhecido na marra e pela força das tuas convicções. Mais uma coisa: não maldigas mais o teu estado de abandono, a falta de solidariedade, e de agora em diante não culpes mais os outros pelo teu mal. Luta contra essas forças com todas as forças que ainda te restam. Levantar, para o paralítico era o mesmo que dizer: eu quero ficar curado, sim!

Toma o teu leito. Este é o ponto decisivo da cura, e que é tão mal compreendido até por quem é curado. Tomar o próprio leito é acatar a ordem decisiva de carregar consigo os sinais de um passado do qual queremos a todo custo esquecer de vez. Mas Jesus, através do diálogo com o paralítico, nos desafia a mostrar as nossas cicatrizes, essas marcas tão profundas que nem mesmo o maior espaço de tempo ou a simples boa vontade poderão apagar. Tomar o leito é o mesmo que tomar a cruz, condição primordial para seguir Jesus. Tomar o leito e o sinal definitivo de que o mal pode nos ter derrubado, mas que ainda assim não pôde nos derrotar.

Anda. É a ordem contrária a tudo que estamos acostumamos a fazer, que é voltar ao ponto de origem para tentar dali recomeçar. Anda, é a ordem de seguir em frente, prosseguir sempre para um alvo mais elevado, para as conquistas que julgávamos impossíveis. É também confrontar de vez as nossas próprias limitações para poder, enfim, ouvir a mesma voz que disse a Abraão, “sai”, e que disse a Moisés, “marcha”. Andar é novo mandamento da fé cristã instituído no diálogo do desconhecido Filho de Deus com o não reconhecimento paralítico de Betesda. 

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