Cura sem fé I

Perguntaram-lhe eles: Quem é o homem que te disse: Toma o teu leito e anda? Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus se havia retirado, por haver muita gente naquele lugar. Leia João 5.1-17
Paralítico de Betesda, Palma il Gionane em 1592
É estarrecedor o que a Bíblia faz para derrubar, um por um, sem exceção, todos os paradigmas da nossa religião. Este dado impressiona, porque até mesmo alguns pressupostos de fé que foram extraídos diretamente de suas páginas e que obtiveram em nosso meio o status de dogmas irrefutáveis, vez por outra são por ela contestados. Talvez o maior deles seja aquele que diz que sem fé Deus não pode agir. Esse dogma, diferentemente de tantos outros que foram criados a partir de doutrinas posteriores, foi extraído do pensamento inspirado dos evangelistas, quando, por conta própria, e não por inspiração divina, avaliaram a missão de Jesus na Galileia como um inominável fracasso: E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles. (Mt 13.58)

Fora da autoridade da Bíblia não poderia haver razão alguma que alguém contestasse esse postulado da doutrina cristã. Sob qualquer ponto de vista, o mínimo que se pode exigir daquele que espera de Deus uma bênção, é que este acredite que ele exista, que tenha o poder de executá-la, e que esteja disposto a concedê-la. Esta é a primeira e mais fundamental lógica para se estabelecer ou mesmo iniciar uma relação direta e sincera com Deus, porque, como disse Paulo: Sem fé é impossível agradar a Deus.

Quando falamos deste tipo de fé não queremos de forma alguma associá-la diretamente àquilo que chamam de fé de poder. Não estamos falando da fé que alguns pregadores usam como meio de conquista, por que este é do tipo de fé que os imperadores tinham nos seus exércitos, ou da fé que Jó tinha nas suas riquezas. Ou seja, não estamos falando na fé condicionada à cura, ao bem estar e à prosperidade, nem da fé que vem a partir da experiência que foi benéfica a nós ou mesmo da experiência vitoriosa de outra pessoa. Jó, na sua opulência, conhecia bem um Deus que era barganhador, que trocava louvores por bênção. Somente na penúria e no abandono que ele pode ver a face do verdadeiro Deus.

É exatamente no abandono e na penúria que se dá o encontro de Jesus com o enfermo, paralítico, ou qualquer outro nome que se queira dar, de Betesda: no abandono de quem não podia contar com a solidariedade de quem quer que fosse, e na penúria da sua própria incapacidade. Há trinta e oito anos aquele homem jazia nessas lamentáveis condições em meio a outras tantas pessoas em condições lamentáveis sem que alguém se dispusesse a ajudá-los a entrar no tanque, que era onde num rasgo de esperança, supunham vir a cura. Era um verdadeiro cada um por si Deus por todos. Mas que Deus era esse? O Deus que privilegiava apenas os mais afoitos? O que se compadece apenas dos que o conhecem? O Deus que curava tão somente os que nele creem? Pelo menos isso é o que a nossa religião diz ser definitivo. Isso é o que os nossos grandes dogmas, que foram criados a partir da nossa conveniência, afirmam ser preponderante.

Mas infelizmente, para o nosso desespero, é exatamente a segurança neste tipo de fé que a Bíblia diz se tratar de uma grande besteira, de um equívoco imperdoável e de uma falta de entendimento inconcebível. Ela diz que Deus pode muito bem se agradar da nossa fé, mas não de forma alguma fica restringido por ela, porque o seu plano de salvação consiste em fazer muitas coisas que não lhe agradam, pelo contrário, lhes são de profundo pesar, mas que  ainda assim são necessárias. A fé é importante, mas não é capital. Que o digam Naamã, Tomé, o paralítico de Betesta e tantos outros. Jesus não fez muitos milagres em Nazaré, porque a nossa concepção o milagre está restrita à evidência do extraordinário. Jesus fez tantos milagres ali como em qualquer outro lugar, porque a sua presença era o grande milagre. Mais do que curar sem fé, Deus nos cura a despeito da nossa fé. (continua)


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