O rico não via Lázaro

Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Leia Lucas 16.19-31
Rico e Lázaro, Leandro Bassano em 1590
Pelo simples fato de ouvirmos narrativas do inferno tão minuciosas e tão precisas que parecem que as pessoas as fazem chegaram de lá na semana passada, não podemos considerar que neste texto Jesus também faz a sua narrativa. O hebraísmo nela contido, diferente de tudo o que de Jesus se tem registrado, nos dá a certeza de que é uma história que era conhecida no seu tempo, e da qual ele faz uso para confrontar o público hostil que o ouvia: Lc 16.14s - Os fariseus, que eram avarentos, ouviam tudo isto e o ridicularizavam. Mas Jesus lhes disse: Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece o vosso coração; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus.

A história não conta se o rico era uma pessoa má e nem se Lázaro era uma pessoa boa. Ela destaca apenas as desigualdades que havia entre eles. Enquanto um se regalava esplendidamente, o outro não recebia sequer migalhas. Um se vestia de púrpura e linho fino, ao passo que o outro estava coberto de úlceras. Um era extremamente rico, enquanto o outro jazia entre os cães. Alguém já disse: Deus criou as diferenças, o homem criou as desigualdades. Apesar de reconhecer a propriedade destas palavras e constatar que nesta história elas serem realmente absurdas, não penso que foi por elas que o homem rico foi sentenciado a uma eternidade de tormentos, mas pelo fato se permitir ser encontrado em um estado de luxúria tão elevado que não lhe permitia enxergar a necessidade do outro. Se o homem rico era bom ou mau não vem ao caso, a questão importante aqui é que ele não via Lázaro. Apesar da proximidade entre eles, o rico não sabia da existência de Lázaro, e tampouco das suas necessidades.

Não é sem razão que a primeira atitude que Jesus tinha para com as pessoas que curava era vê-las. Jesus viu o cego, viu o coxo, viu o paralítico, viu o homem que tinha a mão ressequida, viu o filho morto da viúva de Naim, viu a mulher com fluxo de sangue e viu que o povo era como ovelhas que não tinham pastor. O que mais enfatiza o Primeiro Testamento do milagre do Êxodo é o espanto, tanto dos Judeus quanto dos outros povos ao verem tão poderosa libertação: Dt 4.34 - Ou se um deus intentou ir tomar para si um povo do meio de outro povo, com provas, e com sinais, e com milagres, e com peleja, e com mão poderosa, e com braço estendido, e com grandes espantos, segundo tudo quanto o SENHOR, vosso Deus, vos fez no Egito, aos vossos olhos.

Também em uma parábola que tem sido frequentemente mal usada para destacar a necessidade da ação social, a parábola do bom samaritano, Jesus destaca que a diferença que se estabeleceu em primeiro lugar entre o levita, o sacerdote e o samaritano, é que este último viu o acidentado, enquanto que os outros passaram de largo.

Não teria Jesus usado esta história também para reafirmar que a urgência do atendimento ao necessitado é imperiosa? O homem rico da história só enxerga Lázaro quando não pode fazer mais nada por ele. Isso ainda não seria tão grave se ele só tivesse enxergado Lázaro, no momento em que ele enxergou que Lázaro podia fazer alguma coisa por ele. Ou seja, só enxergar o outro apenas quando nos interessa, ver o outro apenas dentro das nossas necessidades.

Este é o abismo contado na história. O abismo que a história humana criou para ser intransponível. O abismo que até o presente momento tem se mostrado sem volta. O abismo que é para nós o próprio inferno em vida. Não mais nos assustam as narrativas bizarras do inferno, pois a realidade das desigualdades entre nós supera qualquer ameaça das profundezas, mesmos as mais macabras.

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