O Espírito do Natal (final)

Natividade, Giotto
Quando lidamos com um texto cuja precisão dos detalhes é extrema, não temos o direito de sermos sucintos: Ouve ó Israel, o Senhor teu Deus é o único Deus. Amarás, pois, o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda tua alma, e com todas as tuas forças. Querer resumir esta preciosidade dizendo que isso é amar a Deus sobre todas as coisas, é querer escamotear os detalhes para suprimir o verdadeiro
sentido da mensagem. É assim que Jeú conseguiu mostrar-se totalmente transparente a Jonadabe: Vem e vê o meu zelo pelo Senhor. Antigamente se usava muito essa expressão: deixei de ser branco para ser franco. Nunca entendi muito esta primeira parte, mas me parece que o sujeito precisa abrir mão da sua suposta condição racial superior para ser fiel a um conceito. Mas o que normalmente se ouve nas pregações cristãs de hoje não é nem esse tipo de sinceridade. O que normalmente se ouve nos sermões é que nunca devemos quebrar as regras fundamentais da igreja para nos mostrar o que realmente somos ou pensamos. Somos, deste jeito, lobos sob a pele de ovelhas, como preveniu Jesus. Vocês não imaginam o quanto se pode enganar usando a Bíblia desta maneira. O quanto se pode parecer sério, piedoso, e posar de bom cristão, sendo na realidade tão enganador, tão cretino. Não estou nem falando da famosa oração da assembleia de Brasília que a TV mostrou há pouco tempo. Para aquilo não existe parâmetro de avaliação, Aliás, a bancada evangélica quase toda não tem parâmetro, senão não estaria lá ou não se chamaria de evangélica. Falo de coisas muito mais sutis, do dia-a-dia, do nosso cotidiano.

Felizmente o Espírito de Natal possui os prós que não dependem de nós. Ele sobrevive a duras penas graças a um Deus que já veio e já interveio direta e objetivamente na história. É o nosso texto de chamada: Portanto, por meio do Filho, Deus resolveu trazer o Universo de volta para si mesmo. Ele trouxe a paz por meio da morte do seu Filho na cruz e assim trouxe de volta para si mesmo todas as coisas, tanto na terra como no céu. Tanto nas regiões celeste, nas potestades, como gostam de falar, como aqui, no chão, na Terra. Na morte do seu Filho, Deus erradicou de vez a maldição do pecado, e reconciliou consigo, chamou de volta todas as coisas. Eu gostaria de ler este texto de novo, mas confesso que não tenho coragem. É aqui a graça nivela a todos. Eu, por minha vontade, não fiz nada, não decidi nada, Deus foi quem resolveu tudo. O simples conhecimento desta realidade já é um constrangimento muito grande para a minha prepotência de cristão. E aqui que eu entendo muitos suicidas, porque eles quando comparam a verdade de Deus e a sua vontade com a miserabilidade da nossa realidade, nada resta senão esperar pelo pior.

A imagem do presépio que Francisco de Assis criou em 1223, que é bastante parecida com a que temos hoje, pode não ser de todo fiel ao que aconteceu naquela noite, mas ela mostra a face do verdadeiro Espírito de Natal. Não o proposto por nós, mas o pretendido por Deus. No presépio estão presentes em convívio harmonioso unidos por um só espírito reis e pastores, seguidores do judaísmo e magos do oriente, a extrema carência e a riquíssima generosidade, pessoas e animais, anjos e homens, Céus e Terra. Criaturas completamente diferentes. Eu vejo um esforço muito grande para suprimir a palavra mago do texto bíblico, trocando-a por sábio. Agora não foram mais os magos do Oriente, os estudiosos das estrelas, os seguidores de Zoroastro, que visitaram Jesus. Foram homens sábios, tão sábios que já eram cristãos antes de Cristo. Não foi isso que Deus fez. Para congregá-los debaixo de um mesmo teto, Deus não perguntou qual era a religião dos magos, de que classe social eram os pastores, nem qual era o nível de inteligência dos animais, ou ainda qual era o grau de santidade dos anjos. Na verdade ninguém perguntou nada a ninguém. A pergunta que unia a todos e expressava o Espírito do Natal era apenas uma: Onde está o filho de Deus? Onde está a essência mais pura do ser superior? Onde está a expressão terrena da consciência mais elevada, da sublimidade inatingível? Onde está a melhor parte deste ser que deixou um vazio incomen­suravelmente grande no coração de todos nós? Onde está essa busca última, muitas vezes inconsciente de todas as pessoas, de todas as religiões, de todos os credos e dos mais elevados ideais. Onde está?

Essa é a única pergunta que o Espírito do Natal também nos faz hoje: Onde está o filho de Deus hoje? Para que o Espírito de Natal sobreviva temos obrigatoriamente que responder esta pergunta. Nós que morremos de pena da criança de madeira ou de barro que colocamos na manjedoura, mas fazemos de conta que não é conosco quando a vemos dormindo à noite debaixo de marquises. Onde está o filho de Deus? Na boca vendendo drogas? Na esquina fumando crack? Na guerrilha com um cinturão de explosivos? Catando lixo na natureza devastada? Estará ele com o rosto virado para Meca, de pé em frente ao muro das lamentações ou orando o pai Nosso? Hein, onde está o Filho de Deus? Pela morte do seu Filho, Deus trouxe de volta o mundo para si. Pela morte dos seus filhos, nós estamos devolvendo o mundo ao caos.

O zelo pela fé consiste apenas em convidar as pessoas sob o pretexto de conhecer a nossa igreja, camuflando a finalidade única, que é buzinar no ouvido delas uma doutrina como sendo a única válida. Mas no Natal o que Deus pretende é o ecumenismo maior do que o entendimento entre os cristãos. O que ele quer de fato é o diálogo universal das religiões, dos povos, das etnias, de todas as raças e dos credos. Nos escandalizamos bastante com a atitude de Jeú, cujo zelo pela religião o fez exterminar um sem número de pessoas que não adoravam o seu Deus, ou não o adoravam da forma que ele propunha como correta. E estamos muito certos em fazê-lo. Mais do que lamentar a irracionalidade de Jeú, precisamos descobrir as nossas próprias irracionalidades. Descobrir que nesse Natal Deus não quer que você o ame irracionalmente sobre todas as coisas. Ele não quer que você demonstre o seu zelo sendo radical em doutrinas ou credos. Não quer que consideremos malditos aqueles a quem foi buscar de volta para si, e que para isso pagou um preço alto. Não quer que você coloque a sua fé acima do amor, pelo contrário. A fé em Deus, nesse Deus que pregamos, considera que a maior virtude é o amor. Em vez de perguntar ao outro se ele ama a Deus acima de todas as coisas, ajude-o a fazer com que ele procure a sua felicidade somente em Deus. Ajude-o a encontrar em Deus em tudo aquilo que ele procura, porque dois momentos são propostos para nós neste Natal: o momento eterno em que Deus traz a paz de volta ao mundo, chamando para si todas as coisas, através do seu próprio sacrifício, ou o momento fugaz de um coração circunstancialmente sincero, que quer impor a paz pela força, orientado por um Espírito de Natal que estende a mão para poucos, para assistir passivamente o sacrifício de muitos.  

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