O Espírito do Natal II

Rei Saul e seus guerreiros, Museu de Israel, Jerusalém
Infelizmente existe um segundo momento não tão louvável assim. O massacre em nome de Deus, de todos aqueles que, mesmo sendo aparentemente iguais, viverem na mesma região e dividirem as mesmas dificuldades locais, mas que para a sua infelicidade, não seguiam as suas aparências exteriores de religiosidade. Por um erro fatal de avaliação, adoram a outro
Deus, ou ao mesmo Deus de forma diferente, não podemos precisar. O que agravou mais ainda a tragédia é que eles tinham como razão primeira do massacre mostrar ou provar a fé zelosa que tinham para com seu Deus. É justamente nessa hora que assume importância uma palavrinha muito falada em todos os tempos, mas cujo significado na Bíblia é muito pouco conhecido: maldição. Na grande maioria das vezes as pessoas interpretam o ato de amaldiçoar exclusivamente como o de lançar agouros e fazer imprecações sobre uma pessoa. Essa até podia ser uma prática comum entre as religiões pagãs, mas na Bíblia maldição tem uma conotação bem diferente. A Bíblia sabe muito bem que alheia aos supersticiosos, a maldição não tem qualquer efeito prático, por isso pouco lhe dá atenção. Sua atenção não é para com o amaldiçoado e sim para com a pessoa que está amaldiçoando, pois esta demonstra estar com o coração magoado e ferido, pela decepção ou pelar incapacidade de obter justiça.

Para o contexto bíblico o simples fato de ter raiva de alguém já configura uma maldição, e isso passa a ter a mesma dimensão pecaminosa de humilhar, execrar ou desprezar alguém. No Primeiro Testamento a maldição está ligada ao pecado, ao não cumprimento da aliança. Então, a partir daí se estabelece um mistério: a bênção é o mistério da aceitação, e a maldição é o mistério da rejeição. Por que é um mistério? Porque a eleição de Israel, é o grande mistério do amor de Deus, como diz em Dt 7,7-8: não te escolhi porque eras o melhor dos povos; pelo contrário: eras o pior. Eu te escolhi porque eu te amo. Esta é a bênção que surge do meio da maldição, na promoção de quem não tem qualquer valor, na aceitação de quem é desprezado. Assim é escrita a história de Israel, um povo que é resgatado da escravidão unicamente por amor, sem qualquer merecimento, e o que Jeú fez foi rasgar essa página. Ele precisa rasgar a página da aceitação para poder levar a cabo a da insensatez, da rejeição e da exclusão. Para ele se alguém não é tão bom nem é tão fiel quanto ele, ou quanto somos agora, está fora.

Ainda bem que naquela época não se celebrava o Natal, mas se fosse celebrado teríamos chamar a cena de Espírito de Natal arranjado ou conveniente. Vem e vê o meu zelo para com Jahweh. Vem e vê como eu demonstro a minha fé em Deus. Vem e vê como eu trato aqueles que não creem como eu. O que tudo mais lamentável é que não aprendemos nada com eles. Pode até ser que hoje em dia não exterminemos pessoalmente as pessoas de outros credos, nós cristãos somos muito mais requintados. Nós não o fazemos com as próprias mãos, mas esperamos que Deus o faça. Demonstramos o zelo pela igreja cristã através do Maranata, do vem Senhor Jesus e leve os que são seus. Das orações constantes para que Deus arrebate a sua igreja e que deixe todos os infiéis à sua própria sorte. Vem através de um desejo latente que Deus se manifeste e intervenha objetivamente na história para nos livrar das mazelas do mundo, mazelas que nós mesmos ajudamos a criar, e lance os demais à condenação eterna, pelo mesmo velho e conhecido motivo: eles não creem como nós, por isso estão ainda debaixo da maldição.

Será que para ter sinceridade de coração é preciso perguntar ao outro se ele ora como eu oro, se foi batizado quando criança como eu fui, ou do modo que eu fui, se toma a ceia antes da profissão de fé. Não sei, se todo cristão faz isso, mas com certeza não deixa de perguntar se o outro crê em Deus acima de todas as coisas. Isso é que é o que normalmente fazemos. O que se quer de fato saber com esta pergunta? Se o outro está disposto a qualquer coisa para mostrar a sua fé em Deus, como eu estou? Essa pergunta além de absurda é extremamente capciosa, e pior, é totalmente estranha à Bíblia. A Bíblia nunca exigiu no Primeiro Testamento que alguém amasse a Deus acima de todas as coisas, bem como não exige no Segundo Testamento semelhante discrepância. O que claramente ela determina é: amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a sua alma e com todas as tuas forças. Porque a Bíblia sabe que amar a Deus sobre todas as coisas é fanatismo, é jihad, é santificar os horrores da guerra. Foi exatamente o que ela quis nos mostrar quando revelou nas suas páginas a trágica narrativa do encontro entre Jeú e Jonadabe. Quando eu amo a Deus a despeito da razão e acima do próprio amor, eu amaldiçoo quem não age como eu, e assim, me sinto na obrigação de matar quem não ama a Deus da forma que eu amo. Assumo o compromisso de exterminar quem não o cultua como eu cultuo, exatamente como fez Jeú. Ele fez isso fundamentado por um conceito primitivo do período inicial da Idade do Ferro, o qual a mensagem central da Bíblia não estimula ou sequer endossa, mas denuncia, fazendo questão de conter em suas páginas referência tão chocante, unicamente pelo fato de não esconder ou camuflar a real índole dos seus heróis.

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