Ovelhas sem pastor

Ao desembarcar, viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-se deles, porque eram como ovelhas que não têm pastor. E passou a ensinar-lhes muitas coisas. Marcos 6.34
Ovelha perdida, Bill Garrison (1924-2005)
Pode ser que estejamos dando a devida atenção à realidade com a qual Jesus se sensibilizou neste episódio; pode ser que a preocupação maior da igreja de hoje seja engendrar um meio para trazer estas ovelhas desgarradas de volta ao rebanho; pode ser também que se analise a fundo as causas que levaram as tais ovelhas a se desgarrarem; e pode ser ainda que certas práticas e doutrinas desgarrem mais do que propriamente agreguem, mas nada dissimula o fato de que a esmagadora maioria das ovelhas que a humanidade gerou até hoje, continua sem pastor.

Não é sem razão que um parente próximo, agnóstico convicto e extremamente culto, está promovendo uma campanha para desovelhização da humanidade. Sua proposta encontra respaldo na prática que é comumente realizada pelos pastores de ovelhas desde sempre. Diz ele: Um pastor leva suas ovelhas para onde quer: pasto bom ou ruim. Por vezes, nem sabe mesmo onde as está levando. O certo é que o interesse do pastor é tosquiar suas ovelhas (para enriquecer materialmente) e, quando não mais prestarem, um sacrifício cruel as espera. Nada a reparar ou a contestar, é isso mesmo que acontece com as ovelhas ou com qualquer outro animal domesticado que possa ser relacionado como bem material. Quer se diga ovelha, quer operário, a verdade é mais ampla, pois nem mesmo homem, por mais desovelhizado que seja, consegue escapar da realidade do custo benefício.

No entanto, não é bem deste assunto que estamos tratando agora e aqui neste blog. Vejo bem claramente que a proposta inicial do Cristianismo contempla satisfatoriamente as necessidades detectadas nas duas faces da questão. Tanto a condução segura e altruísta da ovelha, quanto à desconstrução da ideologia que formou este ser que docilmente é levado ao sabor dos interesses econômicos de terceiros. Tudo se baseia no fato de Jesus ter se compadecido desse grupo. Jesus não teve pena. Jesus não lamentou o fato. Jesus não responsabilizou o governo ou qualquer pastor presidente local. O segredo que leva à desovelhização e à reconstrução de um ser íntegro e dotado de capacidade e liberdade começa justamente pelo compadecimento.

Muito embora possua vários sinônimos, compadecer significa padecer com, sofrer junto, sentir na pele a mesma aflição e angústia que o desorientado está sentindo no limiar do seu infortúnio. Os muçulmanos estabeleceram o tempo do Ramadan justamente com o intuito de restabelecer vínculos familiares e sociais. Este povo não somente faz jejum de alimentos para conhecer o que é a realidade de quem tem fome, mas se abstêm também dos prazeres, para conhecerem de perto a realidade dos marginalizados. A proposta de Jesus segue nesta direção, pois aquele que é chamado para estar à frente de um rebanho, é chamado ao mesmo tempo para dar a vida pelas suas ovelhas. É chamado para ser o primeiro a sentir as consequências do mal que ameaça as ovelhas.

Paulo entendeu tão bem esta proposta de Jesus, que mais tarde vai estabelecer critérios rígidos sobre a prática pastoral: Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós. Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos. De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida. (II Co 4.7-9 e 12)

O Cristianismo condena severamente o caudilhismo. Não precisamos de mártires nem de salvadores da pátria. Já temos o nosso. Entendemos que Deus anda atrás de homens e mulheres que se disponham a dar as suas vidas pela causa maior da humanidade. Que Deus anda atrás de homens e mulheres que se coloquem à frente da muralha quando esta desaba pela força do inimigo. De pastores ovelhistas o mundo está cheio. Estão faltando aqueles que se dispõem a lutar a batalha inglória de tirar da boca lobos ainda que um sangrento pedaço de pele da ovelha destroçada. Aqueles que se compadecem daquelas que se perderam e foram devoradas.

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