A salvação entrou nesta casa

Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Então, Jesus lhe disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido. Ler Marcos 10.32-44 e Lucas 19.1-10
Jesus e Zaqueu, Basílica de São Marcos, Veneza
Os que andavam com Jesus tinham o pressentimento de que algo muito ruim estava para acontecer. Jesus, por sua vez, não escamoteia o perigo iminente, antecipa com detalhes a sua paixão e morte. Com isso ele está dizendo que não está ali a passeio e sim com o propósito firme de seguir seu caminho, mesmo que isso o leve à morte. Completamente alheios a este clima tenso, Tiago e João tentam obter privilégios através da bajulação, o que despertou a ira dos demais discípulos. Jesus, ignorando a imbecilidade de todos, insiste no tema principal, e diz: Esqueçam de vez esta bobagem de querer ocupar altas posições,não foi para isso que eu chamei vocês. Se alguém entre vocês quiser importante, deixe esse seu desejo e sirva os outros. Se alguém entre vocês quiser ser o primeiro, que este seja o escravo de todos. Porque nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvar muita gente. Ou seja, nada, absolutamente nada, nem mesmo a incompreensão dos seus amigos mais chegados iria tirar Jesus da preocupação com a sua morte.

Após este mal estar, Jesus entra em Jericó e no encontro com Zaqueu revela algo importante sobre o julgamento de Deus. Zaqueu, apesar de ser um homem riquíssimo, tem dois problemas. O primeiro é que todos na sua cidade o odeiam. Ele era um traidor do povo judeu. E segundo, o povo o desconsiderava por ser de baixa estatura. Talvez fossem esses dois motivos que o impediam de chegar perto de Jesus, por isso ele teve que subir numa árvore. Mas Jesus o descobriu lá cima e disse que queria ficar na casa dele. Este convite deixou Zaqueu eufórico, mas também deixou o povo ressabiado. Porque motivo Jesus iria se hospedar na casa de um pecador confesso?

Existe um paradoxo aqui, e para entendê-lo vamos recorrer à parábola do fariseu e o publicano. Na nossa vida cristã nós nos espelhamos sempre no bom fariseu e rejeitamos sempre o mau publicano. Mas nesta parábola foi o mau que voltou em paz para casa. Como pode isso? Se quisermos ser honestos, vamos ter que detestar esta parábola. Para aceitá-la, teríamos que acrescentar algo e imaginar que o publicano volte ao templo demonstrando alguma melhora no seu caráter, e com o discurso do fariseu na ponta da língua: Eu te agradeço, ó Deus, porque não sou como os outros agora.

A parábola viva de Zaqueu é justamente isso: um publicano fazendo o discurso de um fariseu. Depois do belo e arrependido discurso, era de se esperar que Jesus dissesse para Zaqueu: Hoje a salvação entrou na sua casa porque você se arrependeu, fez o bem aos pobres, devolveu tudo o que havia roubado e agora é um homem reto. Quem não pensaria assim? Era isso que gostaríamos de ouvir, pois é bem provável que isso o tornasse grande entre os seus vizinhos, o fizesse patriota ante a sua comunidade, mas para Jesus isso não acrescentou nada. Contrariando a toda nossa lógica de bons cristãos, Jesus reedita o resultado da parábola do fariseu e do publicano e diz: Hoje a salvação entrou nesta casa, porque o Filho do Homem veio buscar quem está perdido. Porque este também é um descendente de Abraão. Assim como Deus rejeitara a oração do fariseu, Jesus rejeita o discurso de Zaqueu para colocá-lo no único lugar onde ele poderia receber um julgamento favorável, e esse lugar é o último, não é o primeiro. Esse lugar é o menor, não o mais importante. 

Mas o que significa ser descendente de Abraão? Significa que a salvação não se deu pelas boas obras de Zaqueu, mas unicamente pela sua condição de ser um perdido. Ele era mais um perdido na longa história da preferência de Deus pelos perdedores. A predileção de Deus por fabricantes de ídolos, como Abraão e Sara. Por assassinos como Moisés. Por adúlteros como Davi. Por safados como Jacó. Por atrapalhados, como Jeremias. Por perseguidores cruéis como Paulo. Pelo que não presta, como Nazaré da Galileia. Por gente má e inconsequente como nós.

Jesus está declarando a única lei que impera no julgamento de Deus: Salvar o perdido. Nunca será julgado o que somos ou o que fazemos na nossa vida, porque assim todos estaríamos sumariamente condenados. Por causa disso que ele nos julgará apenas depois que nos restaurar na grande ressurreição. É o que ele diz para Zaqueu: Eu não tenho compromisso algum com a sua história triste. Estou caminhando para a morte justamente para negar e apagar todo esse seu passado. A salvação entrou na sua casa, mas não foi pelo que você fez, mas sim pelo que eu vou fazer em Jerusalém: dar a minha vida para salvar muita gente.

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