A vida no evangelho

O ladrão vem para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. João 10.10
Criança Geopolítica Assistindo 
o Nascimento do Homem Novo, Salvador Dali
Muito embora há muito se tem pregado as restrições impostas a vida de um cristão, o evangelho propõe algo muito maior do que um simples e comum período de existência de um mortal. Jesus prometeu àqueles que seguissem as sua palavras uma vida abundante. Ele sabia bem que se falasse simplesmente de vida, as pessoas compreenderiam um ou outro aspecto, e abririam mão de todos os demais, por imaginarem, como os protestantes fundamentalistas imaginam, que existe uma proibição taxativa aos prazeres e bons momentos que uma vida plena poderia proporcionar. Para falar de vida, o grego bíblico se valeu de vários vocábulos, e de a cada um um um significado específico, como veremos a seguir.

O grego utiliza o radical bios, para falar da vida que conhecemos com biológica. Ou seja, falar das funções dos órgãos vitais, das necessidades básicas de alimento, condições de higiene, e de tudo o que se refere ao necessário para que a vida possa acontecer e vingar. Um aspecto importantíssimo para o evangelho, uma vez que é uma unanimidade as mensagens bíblicas que denunciam a fome, a miséria e as más condições de vida. O próprio nascimento de Jesus, que hoje é retratado através da tranquilidade e harmonia dos presépios, foi um grave denuncia de Deus, pois viu seu Filho nascer em condições sub humanas, em meio a excrementos de animais. 

Mas também utiliza a palavra psichê, quando quer se referir à vida consciente e aos pensamentos e ponderações que os humanos tem sobre a vida. A psichê seria um avanço sobre a vida biológica, pois consegue fazer com que as pessoas analisem a sua vida além das poucas necessidades básicas. A música Comida dos Titãs é o retrato exato do que poderíamos chamar dessa vida que se expressa através da psichê
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...

A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...

Embora muitos cristãos façam questão de desviar dela, vivemos também um vida política. Longe de mim fomentar aqui a política partidária e pretender, como muitas igrejas pretendem, um governo totalmente evangélico. Parece que vivemos os dois extremos: uns fazendo malabarismos para se elegerem com os votos e o aval das igrejas, e outros escapando pela tangente, abominando qualquer iniciativa que tenha cunho político. O equilíbrio alcançado por Jesus é algo a ser necessariamente imitado. Ele tanto interveio nas decisões dos líderes de seu povo, contrariando leis seculares, quanto não aceitou ser aclamado rei nas cidades da periferia da capital. Um ser político mas que não fez da política um modo de ser.

Temos que ter obrigatoriamente também uma vida social. O relacionamento com as outras pessoas, com outros credos, com outras posições políticas, e ao que parece, daqui para frente, com outros tipos de organização familiar. A igreja não pode se fechar a esta realidade, e precisa urgentemente mudar o seu discurso de forma a atingir e ser influente em todos esses meios. O próprio Jesus nunca evitou o contato com quem quer que fosse: jantou na casa de fariseus e até de um desprezado leproso, aceitou receber unção de prostitutas e mulheres supostamente endemoninhadas e esteve presente nos lugares mais degradantes de Jerusalém, as piscinas e fontes frequentadas exclusivamente pelos amaldiçoados da fé judaica. O que aconteceu na nossa história que nos fez viver uma vida de comunhão tão seletiva?

Não poderíamos deixar de considerar a vida espiritual. A nossa vida de devoção, de introspecção e de enlevo espiritual. A importância que estes momentos tem para o evangelho é crucial. Jesus foi flagrado diversas vezes no seu isolamento e seguidamente recomendava que seus discípulos cultivassem esse costume. Apesar de importante, a vida espiritual não lhe era fundamental, pois não se fechava completamente nela. Sempre que a necessidade de uma pessoa se apresentava como urgente, Jesus interrompia o seu precioso momento para atendê-la.

Por todos esses argumentos que o evangelista João, no versículo acima, coloca na boca de Jesus a palavra grega zoé. Somente os que tinham uma grande compreensão daquela língua, como era o caso dele e de Lucas, entenderiam que Jesus, quando estivesse se referindo à vida abundante, que essa vida seria plena, não especificamente em um ou outro aspecto, mas em todos os aspectos que a vida se apresentasse total e igualmente. 

Parece que algo se perdeu nesta busca e que estamos nos propondo trocar a abundância de vida por uma vida eterna em um tempo que está por vir. Até nisso a nossa concepção está errada. Pois é no exato momento em que nos apropriamos da vida abundante que Jesus propôs, o tempo da eternidade começa a contar. Quem não crê assim, deveria atentar para o que Angelus Silésio, um místico do século XVII ensinava: Se, no teu centro um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de, algum dia, nele entrar.

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