Da culpa à responsabilidade III

Sete pecados capitais, Hieronymus Bosch (1450-1516)
Leia Lc 13,1-9 
As consequências da culpa são complexas, essa é só a primeira e não é nem de longe a mais grave delas. Ainda existe outra mais terrível, a que é narrada na grave denúncia com que Jesus a atitude hipócrita dos “justos” que ali se encontravam, dos que eram acima da lei do seu tempo. A gravíssima postura que Bonhoeffer chamou de SECURITAS, soberba espiritual, segurança na religiosidade ou confiança excessiva em si mesmo.

Muito embora seja um problema tratado com profundidade no livro de Jó, que se levante veementemente contra esses indivíduos, ainda há se nota a persistência de resquícios sobreviventes da doutrina da causa e efeito no restante da Bíblia. Mas nesse texto, Jesus fez por aniquilar qualquer possibilidade de existir na vida de um cristão um vínculo mínimo que seja com esse retrógrado pecado do passado. Para aquelas pessoas que diante da comunidade de fé se julgavam menos culpadas e, portanto, moral e espiritualmente superiores aos outros, Jesus dá o seguinte ultimato: Vocês pensam que os galileus que Pilatos matou eram piores que vocês? Eu vos afirmo: não eram. Vocês pensam que os que morreram esmagados pela torre de Siloé, eram mais pecadores que os outros habitantes desta cidade? Eu vos afirmo: não eram. Vocês pensam que os haitianos soterrados pelo terremoto tinham mais culpa do que os chilenos? Eu vos afirmo: não tinham.

Jesus condena sumariamente esse maldito sentimento subliminar de achar que o mal que acontece com os outros, é sempre por conta de um pecado que nós mesmos nunca cometemos ou cometeremos. Se tal coisa aconteceu com ele, é porque ele cometia pecado. É claro que não imputamos essa culpa ás pessoas abertamente, mas que lá no fundo esse sentimento está latente, não resta menor sombra de dúvida. A calamidade aconteceu por quê? Por culpa deles. É aí que nós começamos a imaginar que os males que acontecem às pessoas comuns jamais irão acontecer conosco, porque estamos na graça, e com ela somos inatingíveis. A esse sentimento se junta uma farisaísmo, no mau sentido da palavra, muito perigoso. É quando eu me coloco acima do bem e do mal. Quando eu penso que posso ter qualquer atitude, porque a graça vai livrar a minha cara, é justamente aí que estou superestimando a graça de Deus. É o pecado da soberba espiritual que resulta na indiferença diante da Palavra de Deus, resulta no entorpecimento da consciência. É quando persistimos em permanecer no pecado ainda não perdoado, assim, acumulamos pecado sobre pecado, culpa sobre culpa, até quando não haver mais lugar para a obediência nem para o arrependimento. É o caminho que leva inexoravelmente à idolatria.

 No terremoto do Haiti não teve aí um doido desalmado, um tal de Benny Hinn, que disse que a causa das mortes do terremoto foi a religião demoníaca dos haitianos? No mínimo ele entende que nunca poderá acontecer com ele algo semelhante. Alguém deveria esfregar esse texto na cara dele e perguntar: Você pensa que o feiticeiro do Vodum é mais pecador que você? Não é. Quando eu encontro alguém para por a culpa, de uma forma bastante conveniente a mim mesmo inocento. Quando me acho melhor que os infortunados e justifico os seus infortúnios estou inserido com justiça no grupo que é devidamente identificado e desqualificado por Jesus, o grupo que ainda vive na ilusão de que coisas ruins nunca acontecem a pessoas boas, e que iníquos tem vida longa, próspera e feliz.

Muito embora seja visto com desconfiança pelo cristianismo, o que os orientais chamam de carma deve ser até certo ponto considerado. Não acreditamos, é claro, no determinismo da causa e efeito. Na Bíblia nós aprendemos que até mesmo Deus reconsidera as questões. A não ser o seu amor, nada mais no mundo é definitivo. Mas a filosofia de carma diz que de alguma forma eu tenho que tentar reparar os meus erros, embora na fé cristã isso nunca é uma condenação definitiva, mas pode vir a ser prova cabal do meu arrependimento. A minha tentativa de reparar o mal que cometi deve ser obstinada. Aprendemos de Jesus que alguém se tem algo contra nós, devemos antes buscar com ele reconciliação, para depois nos apresentarmos diante de Deus. É claro que existem em que isso não é mais possível, existem casos em que as pessoas já morreram. Eu sei que Deus me perdoa e que o meu erro não me perseguirá eternamente, porque ele sempre me dá uma nova chance. E aqui estamos nós nesta diante desse instigante texto da Palavra de Deus. Em meio a tantas tragédias que assolam a humanidade, que ficamos divididos entre o sentimento de culpa e a transferência de responsabilidade. É a esses grupos de atitudes distintas, nos quais nos alternamos constantemente, que Jesus vem ao encontro para dar uma nova chance. E é aqui, que graças a Deus, Jesus conta a parábola da figueira. É lá na figueira que vamos resolver o nosso problema de consciência, a nossa ambiguidade está lá. A figueira é o assunto da desconversa de Jesus que traz à tona todos os sentimentos que a nossa consciência fica dividida diante das chacinas, dos terremotos, dos desabamentos, das enchentes,  e dos tsunamis que nos assolaram no passado, e que continuam a nos aterrorizar quanto ao futuro.

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